O escândalo do INSS é mais do que uma fraude. É a ponta visível de uma transformação silenciosa e brutal: a conversão da pobreza brasileira em ativo financeiro.
Os aposentados que tiveram descontos ilegais em seus benefícios não foram apenas vítimas de corrupção administrativa. Foram convertidos, sem escolha, em instrumentos de crédito, precatórios, papéis de mercado. Cada desconto, cada valor indevido, hoje representa oportunidade de lucro para bancos, financeiras e fundos de investimento. A miséria virou ativo. E o sofrimento, lastro para operações financeiras futuras.
Essa dinâmica expõe o verdadeiro desenho do sistema. Não se trata apenas de falhas de gestão ou episódios isolados de corrupção. Trata-se de uma arquitetura pensada para capturar as rendas mínimas, prolongar a dependência e empacotar a pobreza como um produto negociável. A engrenagem gira silenciosa: o mesmo governo que promete proteger os vulneráveis pavimenta o terreno para que bancos e fundos explorem cada centavo que deveria garantir a sobrevivência dos mais necessitados.
Em paralelo, o avanço do consignado privado — autorizado a alcançar beneficiários do BPC e do Bolsa Família — amplia ainda mais o campo de caça. Agora, não é só o idoso que virou ativo bancário. É também o trabalhador informal, o assistido social, o desempregado estrutural. A dívida virou política pública.
Mas, a máquina estatal opera em outro compasso. Em um único dia, o Brasil gasta R$ 3 bilhões em juros da dívida pública. Em uma semana, seria possível ressarcir integralmente todos os aposentados lesados no escândalo do INSS. Isto se o sistema estivesse realmente preocupado em corrigir as distorções que ele mesmo alimenta.
Mas não é esse o objetivo. A prioridade é manter a engrenagem funcionando: transformar pobreza em renda financeira, dependência em produto bancário, vulnerabilidade em ativo de mercado.
Não estamos assistindo a um processo de privatização clássico, no qual empresas estatais são vendidas ao setor privado. O que ocorre é mais insidioso: a privatização da própria sobrevivência do pobre, sem desestatizar formalmente nada. O Estado continua hipertrofiado, arrecadando, regulando, repassando — mas sua função real é garantir que a pobreza, em vez de ser superada, seja reciclada indefinidamente como motor de acumulação financeira.
A engrenagem não para nos idosos.
Enquanto os mais velhos são empurrados para o crédito fácil e a servidão financeira, os jovens brasileiros são lançados em cassinos digitais travestidos de apostas esportivas. As bets vendem a ilusão de enriquecimento rápido, mas cultivam um ciclo de dívida, desespero e dependência emocional que complementa perfeitamente o projeto: o endividamento desde a juventude.
Assim se fecha o círculo: o idoso hipotecado em dívidas, o jovem preso em apostas, e o sistema financeiro rentabilizando cada elo dessa corrente.
No Brasil de hoje, a única coisa realmente pública é o sofrimento.
O lucro? Este já tem dono.