
“— Penso que já; mas diga-me V. Excia.: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto… Uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. — ‘Confeitaria do Império’, a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Excia. crê que, se ficar ‘Império’, venham quebrar-me as vidraças?
— Isso não sei.
(Diálogo entre o Conselheiro Aires e Custódio (dono da confeitaria), em Esaú e Jacó de Machado de Assis)
O gênio de Machado de Assis registrou com precisão a fotografia política que ilustra a relação do povo brasileiro com a vida pública nacional.
Na obra de Machado, Esaú e Jacó, o Conselheiro Aires — um ex-diplomata solteirão e membro da elite carioca — encontra Custódio, dono de uma confeitaria já conhecida há décadas por um nome ligado ao antigo regime. Alí, a República acaba de ser proclamada e, antes mesmo de qualquer mudança prática, o que se espalha pela capital brasileira é um clima de incerteza: ninguém sabe o que pega bem dizer, o que pega mal escrever, o que pode gerar perseguição ou causar problemas.
O personagem Custódio havia mandado pintar uma tabuleta para a fachada de sua padaria: a padaria do Império. Só que, de repente, esse “Império” deixou de ser apenas tradição comercial e virou um risco simbólico.
Assim, Custódio não se vê como um cidadão integrado a um sistema político, parte de uma nação, protegido pela lei e por seus magistrados.
O Brasil tem dificuldade histórica de desenvolver cidadania e de transformar o povo em grandeza política porque construiu um Estado antes de formar uma comunidade. A máquina institucional surgiu como uma casa de máquinas fria e disposta a obter obediência, sem tradição jurídica clara e sujeita às oligarquias que se apossaram desse aparato com o golpe republicano. Já a formação social tem marcas profundas da escravidão, do voto a cabresto e do uso patrimonialista da máquina pública.
A vida social foi organizada pela “casa grande”: famílias oligárquicas, compadrio, patronagem, proteção e dependência.
A casa de máquinas do Estado brasileiro esteve sempre a serviço de alguém, tinha uma espécie de “dono”; o costume era ver o Estado brasileiro trabalhando em prol dos interesses das oligarquias.
Quando, para o Estado, direitos viram favores, serviços viram privilégios ou concessões, a vida política não floresce. Em vez de cidadão diante de instituições, emerge o cliente diante do intermediário: alguém “resolve”, “abre portas”, “libera a papelada”. Isso esvazia o sentido de deveres e direitos comuns e fragmenta a sociedade em círculos de lealdade, onde a obediência é moeda e a autonomia é exceção.
A cidadania brasileira foi concedida como outorga, como concessão burocrática para legitimação do Estado e exercício do poder.
A política floresce onde os interesses palacianos são trazidos a público, onde os cidadãos têm meios de se defender do Estado e onde o debate na ágora é mais decisivo do que os acordos e conchavos ocultos.
O Brasil é tão pobre desse espírito público que, até hoje, há pouca integração legal, existencial e política ao país.
Ainda persiste a divisão de dois Brasis: um oficial, dos burocratas e da elite intelectual, acadêmica e política; e o Brasil real, feito de pessoas que tentam viver sem estarem integradas ao Brasil oficial.
Vive-se ora o domínio do Brasil de Aires sobre o Brasil de Custódio, ora uma franca tensão e conflito.
O Brasil não florescerá enquanto sua unidade depender da opressão do aparato burocrático do Estado, da retirada dos meios de ação do povo e do empobrecimento controlado da nação.
O Brasil florescerá quando desenhar um projeto de vida comum, quando a unidade nacional depender da união e integração de projetos de vida de brasileiros.
Sem fazer com que as instituições trabalhem a serviço de um projeto de vida comum que integre brasileiros, a cidadania no Brasil será um título burocrático, uma fantasia de acadêmicos que pretendem florear a opressão contra o povo.
Sem desenhar esse projeto, a vida seguirá sob a cisão de dois Brasis: o oficial, opressor, e o Brasil real, oprimido e sobrevivente.