
Por Lorenzo Carrasco e Geraldo Luís Lino
Apesar de muito prejudicada por desinformação, preconceitos e uma visão negativa promovida pelas mesmas forças políticas que estão por trás do ambientalismo internacional, a energia nuclear está na linha de frente da assim denominada transição energética.
E não porque as emissões de dióxido de carbono (CO2) inspirem uma preocupação real, mas pelo simples fato de que uma transição energética efetiva e compatível com a evolução tecnológica da humanidade deve basear-se no aumento da densidade energética das fontes geradoras de energia, e não em um recuo de uma ordem de grandeza nela, como é o caso dos aerogeradores e painéis solares, favoritos dos ambientalistas desinformados.
A nuclear é uma das fontes mais “limpas” e eficientes para operar na base dos sistemas elétricos, ao lado das termelétricas convencionais e hidrelétricas, fornecendo eletricidade de forma contínua e segura (despachável, no jargão do setor), como aerogeradores e painéis solares não podem fazer, além de seu combustível – urânio e, futuramente, tório – apresentar uma vasta disponibilidade na crosta terrestre.
Atualmente, existem 440 reatores nucleares em operação em 32 países, os quais respondem por cerca de 10% da eletricidade gerada no mundo. Outros 63 estão em construção em dez países, dos quais 21 apenas na China, além da Índia, Turquia, Coreia do Sul, Rússia, Reino Unido, EUA, Japão, Emirados Árabes Unidos, Bangladesh, Eslováquia, Irã, França e Argentina. E, segundo a Associação Nuclear Mundial (WNA), há 90 em planejamento.
As qualidades da energia nuclear estão se impondo até mesmo aos que fizeram da “descarbonização” da economia mundial uma profissão de fé. Na conferência climática COP28, em Dubai, em 2023, foi assinada uma declaração de intenções para triplicar a capacidade de geração nuclear até 2050, ano em que os pregoeiros do apocalipse verde elevaram à condição de advento do Juízo Final, caso a humanidade não se arrependa dos seus pecados “carbônicos”.
Em setembro de 2024, um grupo de 14 megabancos e instituições financeiras (Bank of America, Barclays, BNP Paribas, Citigroup, Morgan Stanley, Goldman Sachs, Abu Dhabi Commercial Bank, Ares Management, Brookfield, Crédit Agricole CIB, Guggenheim Securities, Rothschild & Co, Segra Capital Management e Société Générale) anunciou um vasto esquema de financiamento para projetos nucleares, com vistas ao cumprimento da meta estabelecida em Dubai.
Entrevistado pelo Financial Times, um representante do BNP Paribas disse ao jornal que não existe qualquer cenário em que a “neutralidade de carbono” possa ser atingida até 2050 sem a energia nuclear. Um colega seu do Barclays observou que o apoio do banco decorre da constatação das deficiências das fontes eólicas e solares, inconfiáveis para as grandes redes de transmissão.
É sintomático que a iniciativa tenha sido divulgada logo depois que a Constellation Energy Company, proprietária da usina nuclear de Three Mile Island, anunciou a intenção de reativar até 2028 o reator 2 da usina, desativado desde o acidente de 1979, que provocou o seu derretimento parcial. A empresa pretende investir cerca de US$ 1,6 bilhão, com base em um contrato de 20 anos com a Microsoft para o fornecimento de eletricidade “verde” de baixo custo para alimentar data centers regionais de inteligência artificial (IA).
A rápida expansão da IA é um dos fatores que têm impulsionado o interesse crescente na geração nuclear de eletricidade, pois os vastos requisitos de energia firme exigidos por tais equipamentos não podem ser atendidos por fontes intermitentes, ao contrário do que pensam os entusiastas das fontes eólicas e solares.
Um aspecto relevante da expansão nuclear é a emergência de novas tecnologias, como os pequenos reatores modulares (SMR) e o uso do tório como combustível, em complemento ao urânio prevalecente. Os SMR, dos quais existem cerca de 80 projetos em diversas fases de desenvolvimento em todo o mundo, têm potências entre 100-300 megawatts (MW) (contra 600-1300 MW dos grandes reatores convencionais) e oferecem custos menores e flexibilidade, podendo ser instalados individualmente ou em grupos, de acordo com as necessidades. Quanto ao tório, existente na crosta terrestre em quantidades maiores que o urânio, a China, a Índia e a Dinamarca têm projetos promissores que deverão entrar em operação comercial até 2030.
O Brasil corre um sério risco de perder mais esse impulso tecnológico, apesar de ser um dos poucos países do mundo que domina praticamente todo o ciclo de aproveitamento da energia nuclear, do enriquecimento de urânio à engenharia de projeto e construção de reatores e usinas nucleares, dispondo de profissionais qualificados, centros de pesquisa e instalações capacitadas. Além disso, tem reservas de urânio situadas entre as sete ou oito maiores do mundo, com apenas um terço do território nacional prospectado.
Não obstante essas vantagens, o programa nuclear brasileiro se arrasta ao passo de lesma aleijada.
A construção da usina Angra 3, iniciada em 1984, está virtualmente paralisada há mais de duas décadas e toda uma geração de técnicos nucleares atravessará a sua vida profissional sem vê-la concluída (se for, algum dia, terá levado mais tempo do que a construção de algumas catedrais góticas).
Apesar do domínio tecnológico, o País ainda depende de importações para o fornecimento do combustível das suas duas usinas nucleares, com a capacidade de enriquecimento de urânio das Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) sendo ampliada com lentidão exasperante.
A prospecção de urânio foi praticamente encerrada com a extinção da Nuclebrás, em 1989.
O Reator Multipropósito Brasileiro, que, além de um importante impulso às pesquisas científicas, poderia assegurar a autossuficiência no abastecimento de radiofármacos, é discutido sem sair do papel há quase duas décadas.
Da mesma forma, o Laboratório Nacional de Fusão Nuclear segue sendo um sonho de pesquisadores abnegados.
Além dos altos custos decorrentes de tal descaso, um problema adicional é o envelhecimento da força de trabalho, grande parte da qual prestes a se aposentar e com uma taxa de renovação abaixo das necessidades do setor, em boa medida, devido à falta de interesse dos jovens em uma área que oferece apenas perspectivas limitadas de realização profissional.
Tal panorama, se não for revertido, poderá colocar as atividades nucleares no caminho inglório do programa espacial brasileiro. De forma emblemática, ambos têm sido vítimas da enorme dificuldade que os tomadores de decisões nacionais passaram a demonstrar, em especial, desde a década de 1990, para implementar programas de grande complexidade e alcance estratégico. Algo cuja causa não é a falta de capacidade técnica. Afinal, o sofisticado sistema elétrico brasileiro foi planejado e construído por técnicos nacionais e lideranças políticas de visão larga. Empresas como a Petrobras, Embrapa, Embraer, Embratel, Vale, Votorantim, Gerdau, Ultra e outras, são evidências da mesma capacidade.
A questão parece residir em uma letal combinação de miopia estratégica, falta de vontade política e, sobretudo, na retirada do Estado da sua função primordial de orientador e impulsionador do progresso do País, que, sob a influência da “globalização” e seus operadores políticos e econômicos internos, foi transferida aos interesses dos mercados financeiros. O setor elétrico, retalhado e convertido em “unidades de negócios”, é, talvez, o exemplo mais relevante desse processo. Um sistema cada vez mais complexo, administrado por interesses conflitantes com as necessidades da sociedade, incluídos os setores produtivos, e sob sério risco de estar a caminho de um ponto crítico de ineficiência e instabilidade (por ironia, algo semelhante está acontecendo na Alemanha, em acentuado processo de desindustrialização sob a influência ideológica da “transição energética”).
Em tempo: o título deste artigo foi tomado de empréstimo do livro Não gosta do CO2? Energia nuclear: dínamo da reconstrução econômica, de Jonathan Tennenbaum, lançado pela Capax Dei Editora em 2021, o qual oferece um panorama abrangente das potencialidades do setor nuclear, inclusive, das novas tecnologias em desenvolvimento.
Link: https://capaxdei.com.br/product/nao-gosta-do-co2-energia-nuclear-dinamo-da-reconstrucao-economica/