Retorno à normalidade?

A mídia nacional já discute um suposto retorno à normalidade. Isto soa como uma admissão de que, nos últimos anos, vigorou um paradigma de governo de exceção.

Ao que parece, o país atravessou uma gravíssima crise — uma guerra contra um país vizinho, o combate ferrenho a um inimigo interno que ameaça a existência nacional ou algo do gênero.

Só uma crise dessa monta justificaria tamanha naturalidade na admissão de um paradigma de exceção; afinal, que tipo de crise dá legitimidade ao rompimento com a normalidade democrática?

Mas, no Brasil, o que se convencionou chamar de “defesa da democracia” pode ser compreendido como a consolidação de uma forma de administrar uma crise política e conflito institucional por meio do estado de exceção: não com uma suspensão oficial e escancarada da legalidade — como seria cabível, diante de uma crise, decretar um estado de exceção —, mas com um funcionamento em que a normalidade passa a depender, reiteradamente, de medidas extraordinárias tomadas em nome da proteção da própria ordem.

A essência do modelo é a ideia de que há situações em que as leis vigentes já não podem proteger a democracia e, para eliminar o risco de sua extinção, estaria legitimada à decretação do estado de exceção.

Quando o sistema interpreta um movimento popular, quem tem o poder de declarar emergência e decidir quais instrumentos serão necessários para contê-la? A exceção, aqui, não é o caos fora do direito; é o direito operando com um núcleo decisório que redefine, diante da ameaça existencial, os próprios contornos do permitido e do proibido, do urgente e do ordinário.

É nesse ponto que a excepcionalidade ganha forma institucional. Investigações com objeto expansivo e elástico, forte ênfase em prevenção e dissuasão, medidas cautelares que antecedem a estabilização plena do contraditório, ordens executivas com efeitos imediatos e uma coordenação do combate ao risco que tende a concentrar funções e a reduzir a distância entre investigar, impulsionar e julgar. E, nesse acúmulo de funções do estado de defesa da democracia — que gera uma centralização de poder totalmente antirrepublicana —, instala-se o perigo estrutural: quando a emergência vira justificativa permanente, o excepcional deixa de ser remendo e vira solução definitiva; a exceção se normaliza como técnica de governo e passa a organizar o cotidiano do conflito político.

Assim, a chave do paradigma não é a censura explícita nem o autoritarismo declarado; é o deslocamento silencioso do eixo – da legalidade como limite para a legalidade como instrumento elástico de autopreservação institucional.

É nesse cenário que a grande mídia, que apoiou a ascensão do regime de exceção, discute um “retorno à normalidade”. Depois da perseguição, desumanização e prisão de bolsonaristas, as vozes do debate público brasileiro acreditam que é possível retornar à normalidade com expressões públicas de descontentamento, colunas de jornal e editoriais.

Uma crise institucional se instaurou com a criação de um regime de exceção; claramente, as instituições nacionais não passaram ilesas.

Mas isso não interessa às vozes dominantes do debate público brasileiro: interessa ver seus inimigos perseguidos, desumanizados e arruinados — e viver como se, em momento algum, tivessem participado desse massacre administrativo. Aliás, o que é normalidade para essa gente?

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