A política nacional historicamente é contramajoritária e sempre andou na contramão dos interesses e dos valores do povo.

De Machado de Assis a Nelson Rodrigues, nossa literatura expressa essa tendência de neutralização da vontade popular e falta de cidadania. Seja na descrição da placa do dono da doceria do império no romance Esaú e Jacó, de Machado,  ou no comportamento dos funcionários públicos corruptos das peças de Nelson, ou mesmo nos personagens trágicos de Graciliano Ramos, sentimos os efeitos do arranjo institucional imposto pelo golpe republicano.

A transição da monarquia para a república no Brasil em 1889 caracteriza-se por uma ruptura política conduzida essencialmente por elites militares e intelectuais, marcada pela exclusão quase total das camadas populares no processo decisório. Ao contrário das clássicas revoluções populares observadas em outros contextos históricos, a instalação da República brasileira ocorreu sem mobilização ou participação consciente da população, que presenciava passivamente o evento, sem compreender plenamente suas consequências políticas. Esse fenômeno passou a ser uma constante da política nacional, que sob domínio das elites tradicionais, especialmente agrárias e militares, passou a manter intactas as estruturas políticas excludentes como o coronelismo e o clientelismo por décadas, quiçá séculos.

Mas como é possível manter o povo fora do jogo político por tanto tempo? Como um povo pode ser tão passivo e acomodado?

Bem, devemos levar em consideração questões geográficas, econômicas e culturais. O Brasil é um país de dimensões continentais — o que acaba dificultando a nacionalização de propostas, lideranças e grupos —, têm problemas graves com segurança pública, economia e desenvolvimento humano, politizar um povo sob essas condições é muito complexo.

Também é preciso compreender que a política se relaciona com uma esfera específica das relações humanas caracterizada pela distinção fundamental entre amigos e inimigos. Trata-se de uma relação coletiva e pública, não baseada em critérios morais, econômicos ou estéticos, mas na identificação de projetos para a polis, ameaças existenciais reais ou potenciais à comunidade política. Nesse contexto, o “inimigo” é aquele percebido como capaz de ameaçar a existência ou a integridade do grupo político, levando eventualmente a situações extremas como o conflito armado.

Dessa forma, a política sempre se relaciona intrinsecamente com uma dimensão autônoma, marcada pela possibilidade permanente de confronto ou conflito contra um inimigo da unidade política — geralmente grupos, famílias ou cidadãos de uma cidade —, mesmo que não necessariamente concretizado em guerra aberta.

O segredo para manter o povo fora do jogo político nacional é saber escolher seus inimigos, escolher sabiamente contra quem disputará o poder. Nesse caso, a arte que o establishment brasileiro aprendeu foi a arte de manter a oposição controlada, e não permitir que uma oposição real e comprometida com o povo dispute o poder.

Estamos vendo o establishment brasileiro exercitando sua arte, tentando criar uma oposição controlada, que não ameace sua hegemonia. O pejorativamente chamado “bolsonarismo” — que leva esse carimbo justamente para parecer personalista, populista e sem qualquer identificação com o Brasil — tem dado claros sinais de amadurecimento enquanto oposição política, com articulações no exterior e mobilização nacional.

Diante dessa nova ameaça em potencial, a grande mídia já aponta para lideranças “independentes de Bolsonaro” e que transcendem seu grupo político. Mas essas lideranças podem ser chamadas de independentes de quê? Tem ideias que não são compatíveis com o grupo Bolsonarista? Tem uma proposta ou projeto de nação que se destaque diante do grupo? Ou são simplesmente dissidentes rebeldes que podem ser cooptados ou neutralizados depois de desmoralizar o grupo?

No fim das contas, nossa elite mostra que é boa em disputar o poder com o amigo do meu inimigo, não com o inimigo real.

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