
É preciso reconhecer que o neoliberalismo esvaziou o sentido histórico do “bem público”. Não foi apenas com privatizações e a globalização, mas também com o discurso dicotômico que rotula todo coletivismo como uma ameaça aos direitos individuais. Na prática política, o multilateralismo gerou instituições de governança internacional que, por definição, são influenciadas por potências e grandes corporações.
Para as pequenas nações, essas instituições globais, como o BIS, FMI e OMC, surgem como barreiras. Elas só se movem quando acionadas por agentes poderosos o suficiente para influenciar órgãos meta estatais.
Essas engrenagens institucionais dependem da influência na opinião pública, e, nesse sentido, o discurso de Karl Popper foi conveniente. Popper criou uma divisão entre o individualismo liberal e o coletivismo totalitário, gerando um falso problema para a ciência política mundial: como equilibrar os direitos individuais com os direitos coletivos. No entanto, é preciso lembrar que somente indivíduos criam uma ordem política, que é, por essência, coletiva. Reconhecer as distorções causadas pelo neoliberalismo, pela globalização e pela deturpação do “bem público” é essencial.
Em uma casa, durante o casamento, os bens são de uso comum – ainda que a esposa não use o barbeador do marido nem ele seus esmaltes. Há limites auto impostos que mantêm a harmonia. Mas imagine que a esposa decida gastar o dinheiro do mercado no shopping, ou o marido, o dinheiro das contas no bar. Essa atitude ameaça a harmonia doméstica e pode levar o sistema ao colapso. Diante dessa situação, o cônjuge pode tentar restabelecer a ordem.
Agora, pense se uma força externa poderosa – o dono do bar, a mãe ou outro agente – intervém e anula as tentativas de restabelecer a harmonia. Na era da globalização e do multilateralismo, agentes supranacionais exercem mais influência que instituições nacionais. Privatizar nossa casa da moeda, o banco central ou agências reguladoras seria como entregar um marido com problemas com álcool à influência do dono do bar.
Entregar instituições ou serviços estratégicos a agentes que se sobrepõem aos Estados nacionais é buscar problemas para nossa ordem política. E, quanto a problemas políticos, já temos os nossos tradicionais, que por si só nos dão muito trabalho.