Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei.

Publicado em 15 de Novembro de 2025

Quando estudarem, no futuro, a longa marcha da vaca para o brejo que se tornou a democracia brasileira, poucos episódios serão tão emblemáticos quanto o de Tagliaferro. O caso do ex-assessor de Moraes não mostrará um tropeço do Judiciário nem um capítulo mal escrito no livro das leis. Ele é o rosto nu da lógica que sequestrou o poder em Brasília: a dicotomia entre amigo e inimigo como a bússola para decidir quem merece proteção e quem merece cadeia. Quando o próprio ministro denunciado transforma o denunciante em réu, não estamos diante de um defeito no sistema. Estamos diante do sistema funcionando exatamente como foi planejado. O que está em jogo não é a quebra das regras, mas a suspensão delas quando o alvo é o “inimigo”. Tagliaferro não é mais um cidadão brasileiro. É um alvo.

Na visão de Carl Schmitt, a essência da política é a distinção entre amigo e inimigo. O inimigo, neste sentido, não é um adversário a ser derrotado nas urnas, mas uma entidade existencial a ser combatida e destruída. O nosso judiciário, sob a égide de um messianismo autoimposto, fez dessa distinção a nova lei. Para os “amigos” do projeto de poder hegemônico, aplica-se a lei real, com o contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. Para os “inimigos” – os Bolsonaros, os críticos, os Tagliaferros – a lei é suspensa. A neutralização da direita é vendida como uma pré-condição para a própria salvação da “democracia” que os soberanos alegam proteger. O Direito deixa de ser um conjunto universal de normas para tornar-se um instrumento discricionário de punição.

Esta realidade evoca com força a figura filosófica do homo sacer, um conceito do filósofo Giorgio Agamben sobre aqueles que podem ser mortos mas não sacrificados, pois a sua vida vale o mesmo que a de um animal. É uma vida que foi banida da proteção da lei pelo poder. A direita nacional, e em especial a família Bolsonaro e seus apoiadores, se transformaram no arquétipo desse homo sacer no Brasil contemporâneo. Eles podem ser politicamente “abatidos”, seja pela prisão preventiva eternizada, pela censura, pelas quebras de sigilos mais elementares, sem que isso constitua crime para a ordem jurídica. A punição não decorre mais de um crime provado, mas da simples ressonância do status de “ameaça” taxado a quem se contrapõe ao sistema, mostrando que a justiça é dissolvida quando se trata do “inimigo”. 

A consequência deste processo é a morte do cidadão. A cidadania, que garante direitos e proteções perante o Estado, se extingue como chama de vela quando o ato de denunciar o poder se torna mais perigoso do que o próprio crime do poder. O que sobra não é uma sociedade, mas uma massa de súditos, onde uns são “amigos” e outros, “inimigos” expostos à nudez do arbítrio. 

O caso Tagliaferro é um sintoma terminal de uma justiça que deixou de ser cega. O episódio expõe um Supremo que já não se enxerga como guardião da Constituição, mas como o poder soberano do país, que decide quem está dentro e quem está fora da proteção das leis. A exceção dos julgamentos da “trama golpista” virou a regra, e o Direito, um privilégio para os aliados. Isso transforma a arena política num campo de batalha permanente, onde a lei deixa de ser um escudo para o cidadão e se torna arma de aniquilação nas mãos de quem detém o poder. E quando a imparcialidade morre na justiça, a própria noção de Justiça se esvai junto. Nesse novo Brasil, a única lei que parece vigorar plenamente é a mais primitiva de todas: a do amigo e do inimigo. E para os inimigos – que hoje são uns e amanhã serão outros, como é da natureza da guerra – não sobra nada além da pressa e da fúria do poder estatal.

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