
Ao afirmar que o Brasil é incivilizado, qual porcentagem da população discordaria?
Pessoas com inclinações para a esquerda diriam que a desigualdade social e a pobreza distanciam o Brasil da civilidade; o estado de coisas não é aceitável, e reformas são necessárias. Um liberal pode dizer que o país ainda não chegou ao primeiro mundo; faltam a produtividade e a prosperidade dos países desenvolvidos. Alguém mais inclinado à direita pode dizer que o crime organizado exerce poder na república, e isso não é aceitável; por isso, o país estaria caminhando para a barbárie.
Independentemente da perspectiva política, cosmovisão ou orientação moral, a grande maioria há de concordar que o Brasil está aquém do civilizado; existe um mal-estar, uma angústia quanto às fraturas que o país apresenta.
Ao se olhar para a totalidade do Brasil, existem fissuras no processo civilizacional. O poder público brasileiro tem políticas, nos espaços urbanos, para a preservação do meio ambiente, enquanto nesses mesmos espaços existem pessoas sem saneamento básico. Não é permitido manipular, modificar ou desmatar determinados tipos de vegetação, enquanto seres humanos, a alguns quilômetros dali, sequer têm acesso à água potável.
No horizonte de consciência das elites brasileiras, mais vale o esforço em fazer valer leis ambientais do que fornecer o mínimo, o essencial para a vida humana: água potável. Se essas pessoas também dispõem de um ambiente adequado para produzir, prosperar ou minimamente adquirir o alimento diário, pouco importa. As consequências sociais de sustentar um sistema de exclusão e opressão não parecem mensuráveis para a elite brasileira e, nesse sentido, sequer se pode chamar essa organização social de política.
A vida social brasileira se organizou, durante muito tempo, como uma extensão de uma grande unidade doméstica de mando, e não como uma experiência precoce de cidade, de rua impessoal, de areópago, ou de convivência regulada por regras comuns.
O núcleo real de autoridade não era o espaço público, mas a casa entendida como pequeno mundo completo: lugar de produção, de disciplina, de proteção, de punição, de culto, de sociabilidade e de distribuição de oportunidades. Quando a casa assume esse papel na totalidade da vida comum, ela não abriga a família; ela fabrica uma ordem, e essa ordem é, por definição, particularista, porque tem dono, tem hierarquia interna, tem afetos e lealdades, tem portas de entrada e de exclusão, tem um centro pessoal que decide e arbitra. Por isso, nota-se essa falta de integração, essa ausência de vida comum e de projetos nacionais.
Em terras tupiniquins, quais são os limites do Estado? Onde pode atuar e onde deveria, por obrigação, intervir? No Brasil, os limites do exercício do poder do Estado são arbitrários, como era a vontade do senhor da casa-grande. Suas obrigações são igualmente caprichosas, a ponto de se ver sanções pesadíssimas contra quem derruba uma árvore e inércia diante da falta de saneamento.
É preciso admitir: o Brasil não é organizado segundo um projeto político, um projeto de vida comum que integra a totalidade de seus cidadãos com um conjunto de obrigações e direitos, encargos e auxílios. O que há é uma estrutura burocrática, assistencialista e persecutória.
Para alcançar a prosperidade, o nivelamento social e a diminuição da pobreza, é impossível pensar apenas em economia e métricas matematizáveis. Urge um projeto político, uma articulação da vida comum. É preciso integrar o Brasil para civilizá-lo.