
“Dois amores fundaram, pois, duas cidades: o amor próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial” (A Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona).
Na obra A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona tece uma profunda reflexão sobre a natureza humana e o fundamento das sociedades por meio da metáfora das duas cidades, nascidas de dois tipos distintos de amor.
Nesse contexto, o autor não apenas diferencia duas formas de amar, mas apresenta uma visão ampla sobre o destino humano, condicionado pelas escolhas mais profundas da alma. O amor-próprio desordenado, autofágico e narcisista constitui a cidade terrena, onde prevalecem a ambição, o orgulho e a busca incessante por reconhecimento, levando as pessoas ao domínio egoísta sobre o próximo e ao esquecimento do divino. Em contraste, o amor verdadeiro, orientado a Deus e acompanhado pela humildade, funda uma cidade celeste cuja essência é o serviço, a cooperação e o sacrifício sincero em benefício do outro.
Essas duas cidades não são apenas entidades metafóricas, mas representam duas maneiras de se viver, cada uma com valores, prioridades e destinos próprios. Ao escolher entre o amor egoísta e o amor generoso, entre buscar a glória individual ou a comunhão espiritual, o ser humano molda não apenas sua vida particular, mas contribui diretamente para o tipo de sociedade em que vive. Dessa forma, Agostinho não fala apenas de cidades, mas da condição humana, colocando cada indivíduo diante da crucial questão sobre o que amar e a quem servir, determinando assim o horizonte espiritual e histórico da humanidade.
Sob essa perspectiva, nasceu a Europa cristã durante a Idade Média. Ali, despontou uma ordem jurídica e política profundamente enraizada numa visão teológica do mundo, onde o Direito não era compreendido apenas como um conjunto de normas humanas, mas como expressão direta de uma ordem divina transcendente.
Nesse período histórico, a concepção cristã de mundo orientava tanto a estrutura social quanto o exercício do poder político, criando uma unidade peculiar entre autoridade espiritual e autoridade temporal. A pujante cultura cristã européia do período medieval criou uma homogeneidade cultural na qual aristocracia (políticos e militares), clero e povo compartilhavam valores transcendentes e consensuais.
A modernidade nos deu o Estado nacional, com aparatos administrativos centralizados para cada nação, e, com o desenvolvimento dessas ferramentas de administração nacional, surgiu a burocracia oficial.
No Brasil, o processo de desenvolvimento da administração pública foi disfuncional desde o início. Os agentes políticos utilizavam os meios públicos para obter vantagens pessoais, administrando a coisa pública como se fosse privada.
O golpe republicano que interrompeu o desenvolvimento da cidadania e das instituições de Estado no Brasil não teve participação popular. Uma pequena elite militar e intelectual quis moldar o país segundo seu conjunto de crenças e desejos pessoais.
Assim, o golpe republicano parece ter iniciado uma tendência de afastar o povo dos grandes eventos políticos da nação, gerando um divórcio entre os poderes oficiais e a população brasileira.
Como resultado, é notável o abismo entre os valores do cidadão comum e da elite brasileira – esta geralmente com tendências contramajoritárias na política e progressistas na moral.
Além disso, há uma incompatibilidade irremediável entre o modo de vida do Brasil oficial e o do Brasil real. O primeiro utiliza o aparato estatal para manter seus luxos, enriquecer e exercer o poder, enquanto, no Brasil real, a sobrevivência é extremamente difícil.
No Brasil oficial, as instituições estão saudáveis, a democracia é pujante — talvez precisando de ajustes na parte fiscal, algo que requer apenas boa vontade — e só é necessário “recivilizar” uma parte da população, que estaria “infectada pelo ódio”.
Já no Brasil real, o crime organizado controla territórios, informações, mercados e até cabeamento de internet, enquanto o parlamentar mais votado desde a redemocratização precisou se abrigar nos EUA por não confiar no devido processo legal e nas instituições nacionais.
O cidadão comum que vive no Brasil real ainda precisa engolir a seco a farsa do discurso do Brasil oficial, que trata seu voto, seus valores, seus bens e sua vida como se não fossem nada.
O establishment brasileiro, do alto da cidade dos homens, governa guiado pelo amor próprio, sem permitir que sejam construídas a cidadania, as instituições e a representatividade do povo brasileiro no debate público. Não há como negar: no Brasil, subsistem duas cidades e elas estão em conflito.
Permitiremos que vença os interesses da elite com seus próprios interesses, ou veremos o Brasil real representado nas instituições políticas?