Publicado em 08 de Agosto de 2025
O Estadão chamou de sequestro o ato de impedir que os presidentes da Câmara e do Senado ocupassem a mesa. A escolha da palavra molda claramente a narrativa de que houve uma ruptura da ordem e esconde o que realmente motivou a cena: a prisão do principal líder de oposição, em um processo questionado por juristas e alvo de repercussão internacional. Omitir esse contexto não é descuido, é estratégia.
“Golpismo explícito”, diz o título do artigo. Não se tratou de golpe, mas de política. Política dura, feita para sinalizar que não existe normalidade institucional enquanto a liderança da oposição está sob decisão judicial contestada. O gesto foi incomum, mas não foi gratuito. Ao descrevê-lo como ato hostil à democracia, o jornal entrega um enquadramento pronto que serve aos interesses da velha terceira via liberal, do centrão e da Faria Lima, que preferem um Parlamento decorativo a um Congresso disposto a impor custos ao bloco de poder.
A criminalização desse tipo de resistência não protege instituições. Apenas reduz o espaço político de quem não se alinha à narrativa dominante. O Brasil já viu outros campos políticos recorrerem a obstruções físicas ou regimentais sem que isso fosse tratado como crime ou ameaça. O critério, portanto, não é jurídico, mas político. É a conveniência de aplicar a interpretação mais dura apenas quando o alvo é a oposição atual.
Ao classificar o bloqueio da mesa como sequestro, o Estadão participa de um movimento maior: a construção de um consenso forçado, em que imprensa, establishment político e elite financeira falam a mesma língua para manter a aparência de estabilidade. Ao contrário de fortalecer a democracia, o objetivo é garantir que as regras do jogo beneficiem sempre os mesmos atores.
O verdadeiro risco para a democracia reside na ideia de que o Parlamento deve se limitar a ratificar decisões externas, sem reagir a rupturas institucionais que o afetam diretamente — e não no ato simbólico de impedir a mesa. Quando se normaliza a prisão de um líder de oposição e, ao mesmo tempo, se exige comportamento submisso dos parlamentares, a mensagem é clara: há limites invisíveis para o exercício do mandato, definidos fora das urnas.
Tratar como crime um ato político de resistência é criar um precedente perigoso. Hoje, a justificativa é o bloqueio da mesa. Amanhã, qualquer forma de oposição incômoda poderá ser enquadrada da mesma forma. Um Congresso que aceita isso deixa de ser poder independente e passa a atuar como figurante de uma encenação institucional cuidadosamente roteirizada.
O debate honesto começa por reconhecer que o bloqueio foi resposta a uma ruptura anterior. Ignorar isso é transformar a democracia em vitrine e o Parlamento em peça de cenário. E quem apoia essa lógica, sob pretexto de ordem, contribui para esvaziar o último espaço real de disputa política no país.