Enquanto ONGs ambientais vigiam satélites no Brasil para denunciar garimpeiros amazônicos, um país inteiro na América Central foi discretamente redesenhado no mapa geopolítico mundial. Em apenas quatro anos, a China transformou a Nicarágua em laboratório para um novo modelo de expansão internacional: acordos bilaterais opacos, empresas de fachada, adaptação legislativa doméstica e tomada silenciosa de ativos minerais estratégicos. Tudo dentro da “legalidade”.
Desde o restabelecimento das relações diplomáticas entre Manágua e Pequim, em 2021, o regime de Daniel Ortega já cedeu quase 300 mil hectares do território nacional — 2,4% da Nicarágua — para quatro empresas diretamente vinculadas à China. Nenhuma delas possui histórico, estrutura visível ou site funcional. Mas todas têm algo em comum: foram habilitadas por meio de concessões públicas com respaldo jurídico feito sob medida. As leis foram reformadas, o licenciamento flexibilizado e os trâmites agilizados para garantir que o capital chinês entrasse sem resistência — e permanecesse blindado da concorrência.
Em 2022, a Assembleia Nacional Sandinista alterou a Lei de Mineração e o artigo 102 da Constituição. Passou assim a permitir a transferência de concessões sem licitação e concentrou a decisão em um único ministério. O modelo jurídico — que deveria proteger o interesse nacional — foi remodelado para operar como plataforma de externalização da soberania. Os chineses não compraram apenas minério. Compraram a norma que lhes garante prioridade.
Mais do que uma barganha econômica, trata-se de uma engenharia regulatória.
A estratégia de Pequim não é nova: já foi aplicada na África, no Sudeste Asiático e agora avança pela América Latina. O que torna o caso da Nicarágua singular é a escala territorial e a ausência quase total de oposição institucional. O regime de Ortega não apenas entregou acesso a jazidas de ouro em áreas sensíveis e empobrecidas — como o fez para atores sem qualquer histórico no setor — mas também iniciou a remoção sistemática de concessões de empresas ocidentais, sob a justificativa de inatividade ambiental.
Esse processo de “desocidentalização mineral” não ocorreu à margem do Estado — ele é o próprio Estado. O mesmo boletim oficial que anuncia novas concessões para empresas com nomes genéricos e representantes chineses, também formaliza a revogação de títulos a mineradoras locais ou americanas. Tudo com base em critérios administrativos, sem transparência e sem direito ao contraditório.
O ouro, nesse contexto, deixou de ser apenas uma commodity. Passou a financiar um regime autoritário, driblar sanções, reforçar alianças geopolíticas e alimentar a estratégia de acúmulo de reservas do Banco Central da China. A mineração virou instrumento de política externa. A opacidade virou modelo. E o sistema jurídico local — assim como se inicia no Brsil — virou ativo de operação internacional.
O silêncio da comunidade internacional é ensurdecedor. Nenhuma sanção adicional foi aplicada. Nenhum relatório de grandes ONGs ambientais denunciou o avanço chinês sobre áreas de extrema pobreza na costa caribenha. Nenhum veículo de imprensa ocidental tratou o tema com o mesmo alarde dedicado à Amazônia brasileira. Afinal, o discurso dos “valores democráticos” só é acionado quando o adversário está fora do eixo autorizado.
O caso da Nicarágua antecipa um padrão de relação entre China e regimes periféricos: financiamento irrestrito, neutralidade ideológica e uso instrumental do Direito — um modelo que não depende de tropas, mas de normativos. Não exige guerra, apenas maioria parlamentar e silêncio institucional.
O Brasil, com sua burocracia ambiental hiperregulada para empresas nacionais e flexibilizada para investidores estrangeiros, parece cada vez mais próximo dessa rota.
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