É interessante a necessidade de comentar a atualidade política com uma doutrina tão antiga, mais especificamente com o filósofo estagirita: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”. A abertura da Metafísica de Aristóteles, que embora pareça uma sentença tão analítica e vazia de sentido existencial, tem um sentido existencial profundo que ecoa até os dias de hoje, ao menos para os que querem sinceramente entender a realidade. O idioma sintático em que foi escrita a Metafísica (o grego ático), quando traduzido para o nosso idioma neolatino e analítico, tende a subdividir e fatiar a descrição para simular relativa semelhança com o sentido original do texto. Por exemplo, a palavra conhecimento, no grego arcaico, não existe na forma analítica e precisa como existe no português: conhecer, para o homem grego, era uma experiência íntima com a coisa, algo fora do consenso e da tradição oral. A cultura grega que cimentou o caminho de Aristóteles estava muito mais voltada à experiência da visão e das figuras, diferentemente de tradições como a judaica e a persa, mais voltadas às tradições orais. A cultura grega vivia a perspectiva e o desvelamento da natureza; ao invés de lidar com a natureza como orientava a tradição oral (como os sacrifícios a Baal entre os caldeus e o descanso da terra, na lei mosaica), os gregos entenderam que, na natureza, havia coisas que estavam sujeitas à manipulação do homem. O grego, então, começa a especular sobre a transitoriedade dos elementos cósmicos, a natureza do homem, a natureza das associações e sobre a divindade. Em síntese, Aristóteles captou não apenas o espírito de seu tempo, mas uma verdade universal: o homem tem a necessidade natural de orientação diante do cosmos, todos os homens têm, por natureza, o desejo de descrever a realidade diante de si, a preço de passarem por um profundo desconforto. Portanto, o homem, pela natureza espiritual que possui, tende a manter relações com o real que lhe cobra definições, diferentemente dos animais, que se relacionam de forma meramente intelectiva e não racional com a realidade. E essa sentença de Aristóteles ecoa hoje — nas mídias, na política, nas instituições e, principalmente, na angústia individual.

O diplomata americano Henry Kissinger, que serviu como Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, foi um dos arquitetos da política externa americana e da diplomacia de hegemonia yank, um pesquisador do sistema de balança de poder, profundo conhecedor do processo de construção de soberania e influência, deixou ecoar a sentença do estagirita: “Nossa era busca insistentemente, às vezes de forma desesperada, um conceito de ordem mundial. Uma interdependência sem precedente traz consigo a ameaça de caos: na disseminação de armas de destruição em massa, na desintegração de Estados, no impacto da degradação ambiental, na persistência de práticas genocidas e na difusão de novas tecnologias que ameaçam elevar os conflitos para além da compreensão ou do controle humanos. Novos métodos para acessar e comunicar informações ligam regiões como nunca e projetam acontecimentos globalmente — porém de um modo tal que inibe a reflexão, exigindo que os líderes registrem reações instantâneas e em formato que possa ser expresso por slogans. Estaremos nós diante de uma época na qual o futuro será determinado por forças além do controle de qualquer ordem?”

O homem, diante do avanço técnico e da colaboração econômica, vê-se diante de um mundo em que a integração é essencial e, ao mesmo tempo, instável. Nossos smartphones têm peças e processos logísticos que envolvem vários ecossistemas econômicos e políticos, e, mesmo assim, burocratas de vários países entram em conflitos constantemente. Esses conflitos, na era da informação digitalizada, acabam por gerar, a cada instante, uma sensação de crise, um desconforto pela difícil assimilação do funcionamento do sistema de resolução de conflitos econômicos e políticos. Os jornais anunciam sanções e discursos de agentes políticos elegendo vilões e apontando mocinhos. É normal que o homem comum esteja perdido. O problema em assimilar um conceito de ordem mundial sem ter construído os conceitos que antecedem a estrutura das relações de mundo é que há um forçadíssimo salto lógico nesse tipo de construção; a teatralidade da mídia e o desconforto na consciência são responsáveis pela procura de uma resposta para o “onde eu estou?”. O “onde eu estou” obrigatoriamente vai envolver a Índia, China, México e EUA, pois estes são responsáveis por parte da cadeia logística da produção dos smartphones, e estes são de uso comum dos proletários e lumpemproletários. Portanto, qualquer notícia ou reflexão sobre a ordem global cai quase obrigatoriamente no “inabarcável”. As respostas para essa pergunta — tentativas de preencher um vácuo, na verdade — geram as teses mais mirabolantes que se possa imaginar, desde abonar os “massacres administrativos” do nazismo até teorias abstrativas de que a sociedade ocidental “branca, heteronormativa e cisgênero” está impregnada de preconceitos estruturais que precisam ser combatidos em todas as camadas da sociedade, sem qualquer explicação a respeito de onde começaram historicamente esses preconceitos e cobrando nada menos que o poder absoluto para resolver o problema.

Nesta construção lógica, não existem atalhos ou chavões que resolvam o problema que é se orientar no mundo de hoje; as coisas devem começar pela base. É preciso admitir que o debate público descambou em uma loucura generalizada com franco uso de termos abstrativos ao ponto da evocação mística – no caso, o uso de uma palavra como símbolo que evoca uma estrutura mágica e não um conceito racional. Um bom exemplo é a esvaziada palavra “globalismo”. Falar em globalismo evoca diretamente um plano macabro de escravidão mundial – não que não haja planos desse gênero em curso hoje, mas o termo se dirige a essa estrutura mágica e não a um conceito de projeto de poder que se refere ao projeto de sociedade aberta. A intenção da palavra globalismo (caso alguém desinformado tente usá-la como conceito) é relacionar-se com o projeto metacapitalista de “sociedade aberta” defendido por Popper — projeto esse que é amplamente articulado à luz do dia e está em ampla divulgação nos meios intelectuais ocidentais. O mesmo acontece com a palavra comunismo, evocando uma tentativa de “sovietização” do mundo. Esse uso mágico das palavras desrespeita as antinomias do real e nos impede de organizar hierarquicamente os conceitos necessários para a compreensão de determinados fenômenos da realidade concreta.

Kissinger fala sobre um conceito de “ordem mundial”, e é justamente aqui que devemos impor o que é adequado exigir para um conceito de ordem mundial. Ordem quer dizer hierarquia, organização ou conjunto de relações inteligíveis entre vários elementos. E mundial trata-se de “mundo”, não se tratando de geografia simplesmente, mas de um horizonte de consciência que abarca uma determinada gama de agentes participantes da ordem. A ordem mundial no império chinês, por exemplo, tratava-se de tudo aquilo que interagia com o imperador, tudo o que recebia a ordem e sutileza do imperador em maior ou menor grau; no império egípcio, tudo que o sol tocava era o “mundo” — mundo trata-se da realidade (distante geograficamente ou não) que interage com a estrutura vital do homem que está orientando-se. Podemos afirmar que os EUA e a Rússia são mais mundo para nós, brasileiros, que o Butão ou o Iêmen, seja pela presença no noticiário ou mesmo pela presença na cadeia logística que esses países fazem parte e acabam colaborando com a ordem econômica nacional.

Bem, essa construção conceitual pouco elaborada e preenchida de saltos lógicos é claramente proposital; Kissinger não pode admitir que seu novo conceito de ordem mundial é uma mudança de rota no projeto de sociedade aberta.

O livro de Kissinger foi publicado em 2014, ano em que já era visível o processo de desglobalização e que cobrava uma revisão no sistema global de relações internacionais; não é à toa que, em 2024, a ONU lançou um pacto de revisão e reestruturação do multilateralismo.

No momento atual, ou mesmo no período da publicação do livro de Kissinger, a necessidade imediata das classes intelectuais e falantes mundo afora não é a de refletir e pensar sobre um conceito de ordem mundial, mas pensar sobre como os impactos da globalização no seu entorno e como a independência e o desenvolvimento econômico foram comprometidos por esse processo.

Mais do que em qualquer momento da história recente, a classe intelectual nacional precisa transcender a discussão oca e abstrata do establishment anglo-americano para se conscientizar do processo histórico de retração da globalização — alguns acreditam que está sendo inaugurado um mundo multipolar com múltiplos impérios supranacionais que buscarão um equilíbrio de poder, embora nossa circunstância não tenha demonstrado ter preenchido todos os critérios para que seja chamado de mundo multipolar, e não simplesmente desglobalização. Nossa independência e soberania dependem dessa clareza.

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