O século XX foi marcado por conflitos bélicos de grande escala e mudanças abruptas em paradigmas civilizacionais, filosóficos e econômicos.

Durante esse período, assistimos ao nascimento do conceito e projeto político de sociedade aberta, inaugurado pelo filósofo Karl Popper, ao amadurecimento do direito positivo e do Estado de direito — ou seja, a sobreposição da lei e da norma sobre a decisão política —, à elaboração de sistemas macroeconômicos de alcance global e a novas interpretações sobre a natureza e a história da filosofia.

Xavier Zubiri, discípulo de Ortega y Gasset e catedrático de história da filosofia na Universidade Central de Madri, via no pensamento ocidental uma influência tão marcante do pensamento helenístico clássico que chegou a afirmar: “Os gregos somos nós”. Zubiri enxergava no pensamento helenístico uma influência profunda e inescapável na forma de pensar dos ocidentais como um todo, tratando a pergunta “o que é isso?” como uma rememoração dos problemas intelectuais cultivados pelos primeiros filósofos gregos.

O jurista e filósofo Carl Schmitt também admitia uma profunda influência dos gregos no desenvolvimento de nossa civilização e organização política. Sua concepção de nomos (lei, norma) dialoga com a maneira como as cidades-estado gregas organizavam o espaço político. Na polis, havia uma clara distinção entre o espaço público, onde se discutiam os assuntos coletivos, e o espaço privado, reservado à vida doméstica. Essa divisão espacial refletia e sustentava a própria estrutura da comunidade política. Da mesma forma, Schmitt argumenta que toda ordem política está fundamentada em uma organização espacial que define quem pertence à comunidade e quem está fora dela.

Em O Nomos da Terra, Carl Schmitt desenvolve o conceito de nomos como uma chave para entender a relação entre espaço, ordem jurídica e organização política. Embora o termo tenha origem grega e pela tradição signifique “lei” ou “norma”, Schmitt realiza uma investigação filosófica e filológica para aprofundar-se no sentido de uma ordem espacial fundamental, que surge a partir da forma como os homens se apropriam do território. Para ele, o nomos é composto por três momentos interligados: a apropriação (Landnahme), a distribuição (Verteilung) e o uso produtivo (Nutzung). A apropriação é o ato inicial e constitutivo da ordem política: quando um espaço é tomado, cria-se uma base concreta para a organização da sociedade. A partir dessa apropriação, o espaço é distribuído entre grupos ou indivíduos, estabelecendo hierarquias e fronteiras. Finalmente, o uso produtivo do território consolida essa ordem, transformando o espaço apropriado em um recurso que sustenta a vida econômica e social.

Como é possível notar, grandes pensadores do século passado — e outros intelectuais de períodos diversos da história humana também poderiam ser citados — acreditam que a Grécia antiga influenciou todo o processo civilizacional moderno. Isso não ocorre apenas porque a filosofia nasceu na Grécia, mas porque a cultura helenística representou o primeiro avanço humano para dominar a natureza. A sociedade política fundada pelos gregos iniciava-se com o domínio da terra, a sobreposição da vontade humana sobre a natureza. A sociedade política, portanto, é fundada com a imposição da vontade humana sobre a força da natureza.

E é justamente essa tomada da terra, esse domínio da natureza, que foi alienado da tradição política brasileira. É possível notar, não apenas na opinião política do cidadão comum, mas também em vários membros de nossa classe falante, um ímpeto revolucionário, um desejo de reforma abrupta da natureza e da história do Brasil. Sendo impossível estabelecer a ordem política através do domínio da terra, a revolução e a reforma da natureza humana chegam a parecer plausíveis, porque a política não está no horizonte de possibilidades do brasileiro.

O terror existencial diante da natureza indomada faz parecer necessária uma reforma completa de toda a estrutura política da nação, sem que a mudança gradual e as articulações de base sejam uma opção. Em Canaã, o diplomata Graça Aranha utiliza a natureza como um símbolo central para explorar a relação do brasileiro com o ambiente e com o próprio processo civilizatório. O terror diante da natureza é descrito não apenas como um medo físico, mas como uma metáfora para a incapacidade do brasileiro de impor controle sobre o espaço geográfico. A vastidão inexplorada e a força indômita do ambiente natural refletem a ausência de uma apropriação material e simbólica do território, indicando um atraso no processo de domesticação da paisagem que, na visão do autor, seria fundamental para o progresso. Enquanto sociedades europeias moldaram seus ambientes para o desenvolvimento urbano e industrial, no Brasil, a natureza permanece dominante, impondo um sentimento de impotência e uma relação ambígua de resistência e resignação.

Essa perspectiva se torna ainda mais evidente quando contrastada com a figura do imigrante europeu, especialmente o alemão, que chega ao Brasil com uma mentalidade voltada para a conquista e transformação da natureza. Graça Aranha apresenta o imigrante como alguém que aplica técnicas agrícolas avançadas, organiza o espaço com planejamento e disciplina, e busca dominar o ambiente para torná-lo produtivo. Essa postura pragmática entra em conflito com o comportamento do brasileiro nativo, que o autor retrata como mais passivo, incapaz de impor a mesma energia civilizatória sobre o meio. O imigrante, portanto, é idealizado como o vetor do progresso, enquanto o brasileiro é visto como prisioneiro de uma relação arcaica com a natureza.

A natureza, nesse contexto, transcende seu papel físico e se torna uma metáfora para o subdesenvolvimento. O Brasil, ainda cercado por florestas densas, rios inexplorados e terras não cultivadas, simboliza uma nação que não conseguiu se apropriar plenamente de seu território. Para Graça Aranha, essa falta de domínio reflete uma falha no processo de modernização e na construção de uma identidade nacional sólida. A vastidão selvagem do país não é apenas um obstáculo geográfico, mas um sinal de que o Brasil permanece preso a categorias incivilizadas, incapaz de acompanhar o ritmo das nações industrializadas.

Antes de pensar em reformas institucionais que aproximem nosso sistema jurídico ou político do de países europeus, é preciso refletir sobre o que ainda nos separa dos europeus cultural e civilizacionalmente. Para conceber reformas institucionais e mudanças em nosso sistema político, é necessário avaliar se somos um país civilizado que integra seus cidadãos em seu sistema político e oferece uma tradição e instituições isonômicas. É preciso afastar o terror existencial diante da natureza, integrando os cidadãos em um espaço habitável, e não apenas reformar os meios pelos quais se exerce o poder sobre as massas.

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