Publicado em 13 de Outubro de 2025
A UNESCO nomeou o Rio de Janeiro “Capital Mundial do Livro”. A cidade que não resolve o transporte público, onde bibliotecas municipais fecham por falta de verba e escolas carecem de acervo básico, vai sediar o IX Encontro Ibero-americano da Redplanes para discutir leitura, diversidade e democracia.
O evento promete reunir “vozes diversas” para debater políticas públicas de leitura. No papel, é nobre. Na prática, é o que sempre foi: palanque ideológico disfarçado de congresso cultural.
O problema não é o tema. É o roteiro.
O Brasil tem 9,1 milhões de analfabetos absolutos. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional, apenas 10% da população domina plenamente habilidades de leitura e escrita. 29% dos brasileiros são analfabetos funcionais. Nas periferias do Rio, crianças chegam ao quinto ano sem saber ler uma frase completa. Mas o governo prefere discutir “epistemologias decoloniais” e “narrativas contra-hegemônicas”.
O evento tem coorganização de dois ministérios – Cultura e Educação – e segue o script previsível de sempre: equidade racial, diversidade linguística, gênero, povos originários. É a cartilha progressista literalmente encadernada. Enquanto metade do país não entende o que lê, a elite cultural se reúne em hoteis cinco estrelas para aplaudir a si mesma.
Não há busca real por excelência intelectual, apenas por preenchimento de narrativas. Uma das palestras será de uma especialista em “cultura digital e democracia”, outra de uma deputada do PCdoB para falar sobre direitos e diversidade; porque quando se quer discutir liberdade, nada melhor que chamar quem defende o comunismo.
Cada nome tem sua função no teatro identitário. A diversidade está toda ali, de cor, etnia, gênero, menos a diversidade que importa: a de pensamento.
Onde estão os que acreditam que ler Machado de Assis importa mais que a cor de quem o lê? Os que defendem o cânone ocidental não como opressão, mas como conquista civilizatória? Esses não foram convidados. Não porque não existam, mas porque a “diversidade” tem seus limites, e eles terminam exatamente onde começa o pensamento dissidente.
O que sempre foi o encontro solitário entre leitor e obra, experiência individual e transformadora, se tornou doutrinação coletiva. Não se trata mais de formar leitores capazes de pensar por conta própria, e sim de formar militantes que saibam recitar o catecismo correto, que escolham os livros certos, que interpretem as obras pela lente progressista.
Sob o manto da democratização, promove-se a mais sofisticada forma de censura: aquela que não proíbe nem queima livros, mas define quais merecem ser lidos. Um país que não lê está condenado à menoridade intelectual, à manipulação, ao populismo de qualquer matiz. Mas o objetivo foi instrumentalizado com o domínio da identidade sobre a obra, do coletivo sobre indivíduo, da mensagem militante sobre a forma.
Uma sociedade verdadeiramente leitora não é aquela que sabe de cor e salteado o índice temático imposto por burocratas culturais. Não é aquela que repete slogans ou celebra apenas autores previamente aprovados pelo comitê de virtudes. É aquela que tem liberdade e coragem de ler, de discordar, de questionar. De escrever a própria história sem pedir permissão a comissariado nenhum.
Mas isso, claro, não está na pauta do evento. E nem vai estar. Porque uma população que lê de verdade, que pensa, que se indigna, não serve aos propósitos de quem quer usar a cultura como palanque.
Até lá, a necessidade da “Capital Mundial do Livro” vai continuar sendo de novos leitores. E não de militantes.