Entre os Traumas o Menor

Por Victor Zapata

06/12/2024

O uso do poder estatal para dizimar ou dominar populações inteiras foi o fato político mais impactante da primeira metade do século XX. A instrumentalização da legitimidade do Estado nacional para criar máquinas burocráticas que oprimiam e até executavam cidadãos de forma sistemática influenciaram o curso da história humana.

Na dimensão do discurso e da retórica, o projeto de sociedade aberta se coloca como antagonista do chamado “totalitarismo”, que seriam manifestações autocráticas de controle estatal e opressão aos indivíduos.

Mas mesmo com a vitória política do liberalismo e do Estado de direito, a opressão e perseguição a cidadãos comuns e discursos dissidentes não cessou — na verdade sequer diminuiu, ganhando contornos burocráticos e processuais —, a opressão e administração da vida humana ficou mais sofisticada e ganhou um verniz democrático.

Sob o pretexto de assegurar a manutenção do sistema democrático, foram criados dispositivos de controle de opinião, perseguição e processos que podem levar a retirada de direitos e exclusão da cidadania — uma espécie de exílio político sem a expulsão física propriamente dita —, e todos nós nos habituamos a chamar de forma contentada esse regime de democracia.

Hannah Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalém, especificamente em: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, refere-se à capacidade de pessoas comuns cometerem atos terríveis sem que necessariamente tenham intenções maliciosas ou personalidades perversas. Arendt desenvolveu essa ideia ao observar o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial nazista responsável pela logística do Holocausto. Durante o processo, Eichmann revelou-se não como um monstro ou um sádico, mas como um burocrata medíocre, que cumpria ordens e seguia regras sem questionar as consequências de suas ações. Ele argumentava estar “apenas fazendo seu trabalho”, sem refletir profundamente sobre o impacto moral de suas decisões. Para Arendt, o que tornava Eichmann tão assustador não era uma crueldade extraordinária, mas justamente sua incapacidade de pensar criticamente ou a privação total de empatia diante vítimas. Isso demonstra como o mal pode se manifestar de forma ordinária, como podemos nos habituar a maldade sistemática e cotidiana quando a empatia e os afetos humanos são destruídos por processos burocráticos e obediência cega. 

Outro conceito essencial para a compreensão do comportamento do Estado burocrático moderno é o “massacre administrativo” que trata da manifestação de violência organizada e sistematizada através de processos burocráticos, decisões institucionais e mecanismos administrativos que, embora não empreguem diretamente a força física, oprimem de forma sistema um grupo social específico – quando não se estende a populações inteiras. Ele ocorre quando a estrutura organizacional e suas regras são usadas como ferramentas para implementar políticas ou ações que causam sofrimento, destruição ou extermínio, de maneira impessoal e aparentemente racional. Nesse contexto, o massacre administrativo não depende de ações individuais intencionais para causar dano, mas sim da eficiência de um sistema que executa ordens e regulações desumanas, tornando o sofrimento uma consequência lógica e esperada da operação do sistema. A violência se manifesta não por meio de atos brutais evidentes, mas por meio de decisões formais, protocolos, relatórios e documentos que normalizam e legitimam práticas que desumanizam um grupo, como a exclusão de direitos, a privação de recursos essenciais, a segregação ou mesmo o extermínio. 

Em síntese: o massacre administrativo é o mover as alavancas da casa de máquinas burocrática para massacrar um grupo social ou manter sob controle a população de uma nação.

É notável que a banalidade do mal é um fator essencial para a normalização do massacre administrativo, é preciso que o grupo alvo esteja totalmente desamparado e desumanizado para que as engrenagens possam atuar sem interrupções.

Será que no Brasil não estamos presenciando — já habituados e anestesiados — uma máquina de administração do sofrimento humano para fins políticos?

As bets legalizadas consumindo a renda da população mais pobre, os auxílios populistas que se tornaram necessários diante da destruição do setor produtivo — mas que no atual cenário de cortes de gastos serão retirados, comprometendo os meios de subsistência de uma parte da população —, a saúde pública precária que é causa eficiente de sofrimento e mortes prematuras; a ausência de segurança pública que é responsável por gerar uma taxa de mortalidade superior a de zonas de guerra, não seria uma reedição do massacre administrativo teorizado por Hannah Arendt?

Precisando cortar gastos para manter uma boa relação com o mercado, o governo pretende endurecer os critérios de auxílio para idosos e doentes, que a essa altura dependem do governo para sobreviver, mantendo o povo brasileiro sob controle através da administração do sofrimento e administração da opressão.

O efeito “racional” do corte de gastos do governo será a fome e a miséria do povo que ele aprisionou nessa condição.

Mas como não veremos tropas nas ruas, não leremos despachos sobre execuções ou trens lotados de prisioneiros, o trauma será menor.

Entre todos os traumas do século XX, este será o menor.

E caso você pense que essas vítimas merecem passar por isso, talvez seja o sistema tenha sido bem sucedido no processo de desumanizar esse grupo.

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