Do vínculo à bolha: como a esquerda deixou o povo pelo caminho — e a direita pode repetir

A constatação de que Lula perdeu a conexão com o povo não deveria surpreender ninguém. O que surpreende é o tempo que levou para essa percepção se cristalizar. Porque o distanciamento não começou ontem — começou no exato momento em que a esquerda trocou o povo real por uma ideia abstrata de povo: filtrada, identitária, administrável.

Não se trata apenas de erro de comunicação, mas de substituição de base. O que antes era vínculo orgânico virou mediação tecnocrática. O povo virou alvo de campanhas, mas não mais sujeito do processo. No lugar da escuta, entram os editais. No lugar da presença, entram os fóruns. No lugar do conflito real, a simulação de inclusão. A pauta popular foi terceirizada — e o povo percebeu.

É esse esvaziamento que a pesquisa Quaest escancara: quando até jovens, evangélicos e beneficiários de programas sociais dizem não se reconhecer mais no projeto, não se trata de ingratidão, mas de rompimento. O lulismo operava, em seu auge, como uma fórmula de pertencimento. Hoje opera como repartição — distante, protocolar, blindada por redes militantes que mais anulam o contraditório do que representam a diversidade.

A agenda da esquerda, nos últimos anos, foi sendo preenchida por palavras que não pertencem à realidade brasileira. “Sustentabilidade”, “equidade”, “interseccionalidade”, “transição energética”, “justiça climática” — todas elas com significado em círculos específicos, mas quase nenhuma com aderência prática para quem precisa de segurança, energia barata, acesso ao crédito, liberdade de expressão e estabilidade para trabalhar. O resultado é um projeto que se move, mas não mobiliza.

E aqui está o ponto sensível: a direita pode cair na mesma armadilha. Porque o problema não está restrito a um campo. Está na tentação de substituir chão por engajamento, contato real por presença digital, povo por algoritmo. A conexão que hoje existe — e que explica a força de algumas lideranças — não é garantida. Se for negligenciada, tratada como ativo automático, também pode se desfazer.

Não se governa olhando para planilhas, nem se representa apenas a partir de gráficos demográficos. É preciso cruzar o país com os olhos, não só com discursos. Quem não pisa na periferia, no interior, nas feiras, nas igrejas, acaba sendo absorvido pela bolha institucional — e perde a capacidade de traduzir o que o país sente antes que o país grite.

O lulismo falhou por soberba: acreditou que a representação poderia ser mantida indefinidamente a partir da gestão de símbolos. Mas símbolos se esvaziam. O povo real não se reconhece em narrativas fabricadas para agradar organismos multilaterais, think tanks externos ou partidos urbanos de classe média alta. Ele quer presença, clareza, escuta, proteção e futuro. E isso só pode ser oferecido por quem ainda se vê como parte — não como tutor.

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