Constituição, anistia e unidade nacional

Está claro que a sociedade brasileira está em um estado de fratura exposta, paralisada por uma crise que transcende a política nacional, uma crise civilizacional. A recusa do sistema em debater a anistia ampla para os presos de 8 de janeiro não é mero detalhe jurídico, mas o sintoma de uma nação que está sendo induzida a perder a capacidade de perdoar os seus pares. A Inglaterra escolheu a anistia para encerrar a era Cromwell; a França também com seu Édito de Amboise; e até a Suíça anistiou os separatistas de Sonderbund, entre tantos outros países que entenderam uma lição básica: o esquecimento é parte integrante da união de um povo. E o contrário traz consigo apenas ressentimento.

No Brasil atual, a raiz dessa perversão pode ser desenterrada até o abandono deliberado do pacto fundador da Nova República. Durante a Constituinte de 1988, a maioria esmagadora votou a favor de um destaque que pleiteava um único tema: retirar do texto a expressão que tornava ações contra a ordem institucional “insusceptíveis do benefício da anistia”. A mensagem foi, e ainda é, de uma clareza solar para quem quer ver. A anistia, como instrumento de reconciliação, deve estar sempre disponível, porque o objetivo maior do Estado não é a vingança, mas a paz social.

A inspiração para essa emenda, como levantou o então Ministro da Justiça Fernando Lyra, vinha das transições bem-sucedidas de Espanha, Portugal, Grécia e tantos outros que utilizaram a anistia para superar seus conflitos internos do passado. A anistia não era vista como impunidade, mas como ferramenta essencial para evitar que a democracia se tornasse uma máquina de moer o seu próprio povo.

Alguns votos contaram uma história mais complexa que outros. A bancada do Partido dos Trabalhadores, embora tenha votado favoravelmente ao destaque (incluindo o voto “sim” de um tal Luiz Inácio Lula da Silva), protocolou uma declaração que revelava seu verdadeiro pensamento. Nela, diferenciavam a “ação golpista de grupelhos […] a serviço da burguesia” da “ação de amplas massas populares”, uma distinção que na época era registro de visão minoritária, mas que, através do sequestro dos espaços institucionais, se tornou a doutrina não-oficial do Estado brasileiro.

O que assistimos hoje, com o STF tratando os réus do 8 de janeiro como párias indignos de clemência, é a materialização daquela nota de rodapé petista atropelando a vontade soberana. No julgamento que anulou a graça presidencial à Daniel Silveira, o Ministro Dias Toffoli afirmou não haver “interesse público […] em perdoar aquele que foi devidamente condenado por atentar contra a própria existência do estado democrático”. O ministro, que com certeza conhece a história da constituinte, colocou a si e o STF diretamente acima da decisão da Constituinte – pensou e decidiu exatamente o oposto: que o interesse nacional pode, sim, exigir o perdão para pacificar o país.

A lógica do sistema não é a lógica da Constituição, mas a da hegemonia da luta de classes, onde o “inimigo do povo” pode (e deve!) ser esmagado sem direito a recurso. A anistia não é um abraço de impunidade, é rejeitar a lógica de guerra cultural que nos condena à instabilidade permanente, onde o país se torna um mero “mercado de oportunidades” para o capital especulativo, mas nunca uma nação com um projeto de futuro. A anistia ampla, geral e irrestrita é o único remédio para tratar a já combalida e doente unidade civilizacional do Brasil.

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