As vidas que pertencem ao tráfico

Publicado em 30 de Outubro de 2025

Os campos de concentração que marcaram o século passado são estudados como fato histórico ou como uma espécie de forma final de um eterno fascismo.

Nossa intelligentsia posa como classe combatente desse eterno fascismo e de qualquer fragmento de nazismo que ameaça constantemente retornar.

Mas jamais as vozes públicas do debate nacional esboçaram estudar ou compreender o paradigma político-jurídico que possibilitou a estruturação de campos de concentração.

Os criminosos de alta periculosidade hoje, no Brasil, estão mais revestidos de direitos, amparo legal e dispositivos processuais de garantia da isonomia, o que mostra a necessidade de uma ordem política que garanta a suspensão de direitos, tribunais de exceção e uma polícia imune aos órgãos de vigilância e justiça.

Um sistema complexo como os campos de concentração, que possibilitaram os massacres administrativos nazistas — como já anuncia o termo de Hannah Arendt: o massacre é técnico, administrado e sistemático —, não subsistiria na barbárie total, em um caos privado de instituições, mas em uma ordem política onde as instituições são uma casa de máquinas amoral, governada por tiranos desumanos que comandam o massacre de seus altos postos.

É necessário um arranjo institucional que não diferencie o político do policial, o exercício do poder soberano fundamentado no poder nacional e o poder policial que vigia, pune e sanciona segundo seu cânone jurídico.

O campo de concentração é o espaço político onde o poder policial é absoluto: o guarda, a polícia especial e o carcereiro exercem o poder sobre o interno do campo, que está despido de todos os direitos. Em certo sentido, o interno do campo de concentração é um homo sacer: uma vida matável, desprovida de direitos e proteção das instituições — inserida na ordem política exclusivamente para a exclusão de seus direitos.

Se o campo de concentração demanda uma burocracia organizada para administrar o massacre e um espaço político que institui um poder soberano e a exclusão de direitos, estariam muito longe as favelas dos campos de concentração?

O morador da favela que está sob jurisdição da burocracia do crime não seria uma vida sem direitos, uma espécie de homo sacer diante da facção dominante?

Moradores usados como escudos humanos, coagidos, ameaçados ou obrigados a fugir para não ter parte nos crimes das facções, não são sujeitos excluídos de seus direitos? Não estão igualmente sob exclusão de direitos diante das estruturas de governança do narcoestado?

Quando tal engenharia de exceções se estabiliza — tornando-se o método de governo da burocracia da facção —, o ilícito deixa de parasitar a ordem e passa a disputá-la, instaurando uma legalidade alternativa que redefine pertencimento, tributação e adjudicação.

Dizer que se trata de terrorismo não é exagero retórico, mas de reconhecimento do núcleo do fenômeno: violência sistemática, publicamente exibida e orientada a remodelar a ordem política.

A resposta adequada, por sua vez, não pode aceitar a naturalização da exceção — nem da parte criminosa, nem do próprio Estado. Requer recompor a unidade decisional legítima e a vigência ordinária da lei nos territórios concretos; proteger e fortalecer as mediações sociais que ancoram a autoridade; restaurar a previsibilidade normativa e a proximidade institucional com a vida comum.

A verdade inconveniente é que moradores das favelas são igualmente excluídos de direitos, tanto quanto os internos de um campo de concentração nazista.

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