
São Paulo foi palco de um evento que, à primeira vista, poderia parecer uma celebração da modernidade e da tecnologia: Brazilian igaming Summit, a feira das bets. Com uma fauna digital composta por “tigrinhos”, “coelhinhos”, “dragõezinhos” e “ratinhos”, o evento reuniu empresas, influenciadores e entusiastas das apostas online, cassinos físicos, bingos etc.
Mas, por trás das luzes, dos estandes coloridos e das promessas de ganhos fáceis, o que se viu foi um mundo à parte, onde o que menos se fala é a verdade incômoda: as apostas se tornaram um vício, uma praga que consome o suado dinheirinho de quem mal tem o suficiente para sobreviver.
Fomos lá para ver o evento de perto. Acompanhamos painéis, debates e apresentações. No entanto, entre tantas palavras bonitas e projeções otimistas, um tema essencial foi convenientemente abafado: o impacto devastador que esse mercado tem na vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. Quando o assunto é o Bolsa Família, por exemplo, os discursos soam quase como estratégias de guerra. Fala-se em “impedir” que o dinheiro do benefício seja usado em apostas, como se isso fosse uma missão heroica. No entanto, não há nada de mirabolante nisso – hoje é mais fácil do que nunca cruzar os dados do Cadastro Único com os sistemas de bancos e gateways de pagamento que intermediam as transações entre o “usuário” e as casas de apostas. A verdade é que o dinheiro que deveria garantir a subsistência de famílias inteiras continua drenado por essa máquina de ilusões.
Podemos chamar grande parte dos apostadores de “usuários”, pois sofrem da chamada ludopatia ou jogo patológico. Não é apenas um passatempo ou uma escolha racional – para muitos, é um vício tão destrutivo quanto o uso de drogas. A feira, com seus mascotes fofinhos e promessas de riqueza instantânea, mascara essa realidade com um verniz de glamour. Mas o que está em jogo é o salário mínimo, o auxílio do governo, aquela graninha extra que o trabalhador conquista pintando uma parede, cortando uma grama ou vendendo paçoca no farol. É esse dinheiro, suado e escasso, que evapora nos caça-níqueis digitais.
Um dos temas mais discutidos no evento foi a criação de loterias municipais e estaduais. Isso mesmo: governadores e prefeitos querem uma fatia desse bolo, uma “loteria para chamar de sua”. Os argumentos são sempre os mesmos: desenvolvimento, aumento de arrecadação, benefícios para a sociedade. Mas o mais importante fica de fora da discussão: de onde vem esse dinheiro? Não vem de grandes investidores ou magnatas. Sai do bolso do cidadão comum, daquele que já vive no limite, contando moedas para chegar ao fim do mês. Que tipo de desenvolvimento pode surgir a partir daí? Seria o mesmo que dizer que a Cracolândia gira a economia – uma justificativa cínica para lucrar às custas da miséria e do vício alheios.
Não seria exagero chamar a feira das bets de uma “Cracolândia digital”.
Assim como o crack destrói vidas sob o pretexto de um alívio momentâneo, as apostas online seduzem com a falsa promessa de prosperidade. Os painéis que acompanhamos falaram de tecnologia, inovação e mercado, mas raramente tocaram na ferida aberta: o custo humano desse modelo de negócios. Enquanto os mascotes dançam e os painéis luminosos brilham, famílias seguem perdendo o pouco que têm, e o vício se espalha como uma epidemia silenciosa.
É preciso olhar além do espetáculo. A feira das bets não é apenas um evento – é um retrato de um sistema que lucra com a vulnerabilidade, que transforma necessidade em oportunidade de exploração. O desenvolvimento verdadeiro não se constrói sobre o desespero, mas sobre a dignidade. Até que essa verdade seja dita em alto e bom som, os “tigrinhos” e “ratinhos” continuarão a devorar o que resta do bolso e da esperança de milhões de brasileiros.
A Ferrari do influenciador que indica a casa de apostas, o terno italiano do banqueiro, tudo pode ser muito bonito. Mas a realidade de quem sustenta esse mercado é completamente diferente – expõe um cenário trágico e desolador.