
Publicado em 26 de Novembro de 2025
Há algo muito mais perigoso – ou, na linguagem que a elite brasileira entende, muito mais caro – em jogo nas seguidas decisões espantosas que viraram rotina no chamado “inquérito do golpe”. A mais recente delas se estendeu por 17 páginas para fundamentar a conversão da prisão domiciliar do ex-presidente Bolsonaro em prisão preventiva. Nela, o ministro recorreu, não pela primeira vez, a um elemento alheio ao réu – uma vigília religiosa convocada por seu filho, o senador Flávio Bolsonaro. Um evento que ocorreu sem incidentes, sem repressão policial e sem que qualquer participante fosse indiciado. Mas foi este ato, convocado por um filho, o pilar do fundamento para o cárcere do pai.
O cerne da gravidade deste episódio não está na figura política de Bolsonaro, mas na demolição de um pilar civilizacional: o princípio da intranscendência da pena.
Essa ideia aparece no Direito Romano, com o código Justiniano, que proibia que um castigo corporal fosse passado para o herdeiro do malfeitor. A Igreja Católica, séculos depois, incluiu o Nullus punitur pro alieno delicto – ninguém é punido pela ofensa de outrem – como a ideia central do Código Canônico. Nós herdamos esta ideia e a colocamos no âmago da constituição, no Artigo 5º, inciso XLV (“nenhuma pena passará da pessoa do condenado”). Tal princípio é o que separa a justiça da barbárie tribal, onde clãs inteiros pagavam pelos erros de um indivíduo. Ao usar a conduta de outros como lastro probatório para a prisão de Jair Bolsonaro, o judiciário efetivou a “responsabilidade por contágio”.
Isso não é um erro judiciário comum. É uma bomba atômica no sistema jurídico. Se a vigília não constituiu crime para os presentes e nem para o organizador, por que serve de agravante penal para um terceiro ausente? É a lógica do “Direito Penal do Inimigo” em ação, onde o alvo justifica os meios, e as garantias constitucionais são suspensas em nome da “defesa da democracia”.
Este fenômeno não é um raio em céu azul, é o resultado cumulativo de um processo de degradação institucional que, há anos, o País vem sofrendo. No Brasil atual, a lei escrita vale menos que a vontade do juiz.
O sistema de freios e contrapesos falhou. Quando se pode decretar a perda da liberdade de alguém com base em atos de familiares do réu, tal decisão é referendada pelos seus pares e executada pela Polícia Federal sem contestação, o Estado de Direito cedeu lugar ao Estado de Polícia.
Estamos diante da consolidação de uma juristocracia onde a “lei” é apenas o que o tribunal diz que é, na hora em que diz. O perigo reside na escala de tempo. Mudanças abruptas geram revolta, mas mudanças graduais geram costume. Ao aceitar que a violação de terceiros justifique o cárcere de uma pessoa, a sociedade assina um cheque em branco.
O Direito é uma construção milenar, erguido para proteger o indivíduo contra o poder arbitrário do Estado. Sua demolição não vem com explosões, mas com a erosão dos seus conceitos. A pessoalidade da pena foi revogada na prática no Brasil, e nem a comunidade jurídica nem a política parecem entender a falta que ela fará. O que resta é o exercício cru do poder, despido da elegância das formas jurídicas e operando sob a lógica de que para os inimigos do regime, o código penal é uma arma, não um limite. A prisão de Jair Bolsonaro por atos de outras pessoas não vai ser o fim da história, mas a inauguração oficial de uma era onde inocência ou culpa são meros detalhes burocráticos diante da vontade de punir.