A suprema injustiça

Publicado em 23 de Novembro de 2025
Perto das 22h do dia 21 de novembro de 2025, Jair Messias Bolsonaro desligou a televisão e fechou os olhos. Uma tornozeleira eletrônica transmitia coordenadas a cada quatro segundos para um servidor do Ministério da Justiça. Do lado de fora, grades e câmeras. Agentes da Polícia Federal anotavam o horário no caderno de ocorrências. O homem mais monitorado do Brasil adormeceu sem saber que seu destino já havia sido selado por um post de Instagram que ele não escreveu.

Horas antes, a quilômetros dali, seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, publicara um vídeo. Era um convite para uma “vigília pela saúde” e um apelo ao “Senhor dos Exércitos”. No dicionário de qualquer democracia, isso é liberdade de culto. O ministro Alexandre de Moraes viu, nesse simples pedido de um filho indignado, uma confissão de fuga.

Onde o filho escreveu “vigília”, o juiz leu “tumulto”. Onde se pediu “oração”, o Estado viu “manifestações populares criminosas”. Pela primeira vez na história do judiciário brasileiro, o ato de dobrar os joelhos em via pública foi tipificado como uma tática de guerra, descrita no documento como “reunião ilícita” capaz de romper o Estado de Direito.

A justiça de exceção opera como uma prensa. Não distingue resistências, apenas esmaga até que o espaço – a liberdade – deixe de existir. A prensa sob a qual Bolsonaro teve sua liberdade esmagada hoje não foi acionada por nenhum crime, mas pela “interpretação de probabilidades”. A decisão não cita passagens aéreas compradas ou interceptações telefônicas. O passaporte de Bolsonaro continua apreendido. O que há é um post de Instagram. Feito por outra pessoa. Sobre uma vigília de oração.

O Direito Penal foi construído sobre o Nulla poena sine culpa – não há pena sem culpa. É a primeira lição das faculdades de Direito e o que separa democracias de monarquias absolutistas. O conceito da responsabilidade individual diz que o pai não responde pelos pecados do filho. Mas na nova jurisprudência de Brasília, a culpa é contagiosa. Um filho convocou fiéis e o pai, incomunicável e alheio, é levado para a prisão.

Em 2018, Bolsonaro levou uma facada que perfurou seu intestino em múltiplos pontos. Perdeu 40% do sangue. Passou por quatro cirurgias. Seu abdômen é um mapa de cicatrizes deixadas pelas internações de emergência, quadro que se agravou neste confinamento.

Este é o fugitivo que o Supremo identificou: um homem de 70 anos com sequelas permanentes de tentativa de assassinato, dormindo cercado por policiais federais, com um GPS no tornozelo que precisaria correr treze quilômetros monitorados para escapar.

O verdadeiro teste da justiça vem quando o réu é divisivo. Quando metade do país o quer preso e a outra metade o vê como mártir.  O perigo desta decisão não está apenas na prisão de um ex-presidente, mas na linha que se cruza. Ao entender oração e fé como crime e disfarce, o Supremo enviou um recado a milhões de brasileiros: a sua liberdade, até mesmo a de oração, só é lícita quando não incomoda o sistema. Se as garantias constitucionais dependem de quem está rezando, elas não são garantias, são privilégios. A caneta que hoje reescreve o significado de “vigília” é a mesma que, amanhã, vai reescrever o significado de “liberdade”.

Juristas e historiadores vão voltar a esses documentos. Vão procurar as provas de fuga. Vão encontrar a história de um homem perseguido por ser líder de uma ideia de Brasil que desagradou o sistema. E vão ver que os responsáveis por esse sistema, como ratos num navio, deixaram para reagir apenas quando o perigo estivesse à sua própria porta.

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