Como é verde a usura – a financeirização como fator de “insustentabilidade”

Por: Lorenzo Carrasco e Geraldo Luís Lino

O maior problema ambiental do mundo não é a mudança climática ou o desmatamento das florestas tropicais, bioma Amazônia incluso, mas a poluição hídrica, da qual a maior contribuição provém do lançamento de esgotos não tratados nos cursos d’água. Um problema que afeta fundamentalmente mais de 140 países do mundo, onde mais de 70% das doenças registradas são transmissíveis pela água de má qualidade. E cuja solução requer apenas abordagens e tecnologias amplamente dominadas pela humanidade, mas cuja adoção, não obstante, esbarra na falta de vontade política e, principalmente, no controle da emissão de moeda e crédito por agentes privados supranacionais que exercem influência determinante sobre as políticas de desenvolvimento de numerosos governos ou, sendo mais preciso, de subdesenvolvimento.

Essa financeirização da economia mundial, gestada a partir da década de 1970 e acentuada com a “globalização” dos anos 1990, converteu o sistema financeiro em uma megafábrica de dívidas, juros e instrumentos financeiros especulativos, tornada um fim em si mesmo e cada vez mais apartada – na verdade, parasitária – da economia real geradora de bens e serviços produtivos, em um evidente desvio da função que o dinheiro deveria desempenhar nas sociedades.

A distorção se mostra no montante global de endividamento público e privado, que atinge 237% do PIB mundial, estimado em US$ 110 trilhões, e no valor nocional do mercado de derivativos “de balcão” (OTC), na casa de US$ 730 trilhões. Nas próprias economias desenvolvidas, as proporções dívida pública/PIB praticamente dobraram desde a década de 1980. E o problema afeta mais gravemente o setor em desenvolvimento, muito mais carente de investimentos produtivos, ficando à mercê da volatilidade dos mercados financeiros globais.

Limitando-nos ao saneamento, um estudo de 2020 do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) estima que investimentos anuais de US$ 105 bilhões poderiam zerar o déficit mundial de saneamento básico (tratamento de esgotos incluso) em menos de 15 anos. Para eliminar apenas o vergonhoso déficit de instalações sanitárias, que obriga mais de 1,5 bilhão de habitantes do planeta a fazerem suas necessidades fisiológicas ao ar livre, o valor seria da ordem de meros US$ 5,5 bilhões/ano no mesmo período.

Valores, convenhamos, pífios em relação aos enormes benefícios proporcionados por infraestruturas de saneamento modernas. Diversas pesquisas realizadas em todos os continentes mostram que cada unidade monetária investida em saneamento resulta num fator multiplicador de quatro unidades, em melhorias de saúde pública, oportunidades econômicas e indicadores socioeconômicos.

O Brasil é um caso exemplar. Segundo o Banco Mundial, apenas 49,6% da população tem acesso à coleta e tratamento de esgoto, abaixo da média mundial de 56,6%. O Instituto Trata Brasil, uma rara ONG que trabalha com problemas ambientais reais, estima a necessidade de investimentos anuais da ordem de R$ 45 bilhões ao longo de uma década para eliminar o déficit dessa infraestrutura crucial.

Uma iniciativa sustentada nesse sentido proporcionaria um enorme salto qualitativo e quantitativo de benefícios socioeconômicos, além de um grande incentivo aos serviços de engenharia e afins, bastante prejudicados pela semiestagnação econômica predominante.

A questão-chave é: de onde virá o dinheiro necessário? Este ano, os leilões de concessões na área devem movimentar valores de R$ 27 bilhões. Porém, os investimentos no setor – de resto, nos demais setores produtivos – são fortemente prejudicados pelo regime de juros olímpicos imposto ao País pelo Banco Central em benefício da alta finança globalizada, com a taxa Selic superando os níveis de retorno esperados da maioria das atividades produtivas legais aqui praticadas. O problema maior não é propriamente a “escassez” de recursos, mas a hegemonia ideológico-política da financeirização, limitadora do crédito produtivo e das opções para a superação do impasse.

A utilização de parte das reservas internacionais poderia ser uma valiosa fonte alternativa de recursos. Um estudo de 2022 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) (Christian Vonbun, “Estimativas de reservas internacionais ótimas sob baixos níveis de dívida externa de curto prazo”) estima que, naquele ano, quando as reservas eram de US$ 325 bilhões, um nível “ótimo” delas, de US$ 201 bilhões, cumpriria plenamente as funções esperadas de um tal seguro contra turbulências globais. Com as reservas atuais situando-se na casa de US$ 329 bilhões, pode-se estimar que o emprego de cerca de US$ 10 bilhões por ano ao longo de um decênio proviria plenamente os recursos necessários para um programa de tamanho alcance potencial, implementado por uma ampla mobilização público-privada.

Os problemas técnicos envolvidos não seriam um grande problema para a sofisticada expertise financeira nacional.

Outra hipótese, levantada por economistas como Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do IBGE e do BNDES, seria a conversão parcial das dívidas dos estados em investimentos em infraestrutura – “um pacotaço de grandes e pequenos projetos, de energias limpas, de saneamento e vias de transporte, de águas e ambiente, de novas tecnologias e saúde, mudarão a cara do país em quatro anos”, como disse ele ao jornal O Estado de Minas de 27 de agosto de 2022.

Embora possam parecer delirantes e “heréticas”, tais propostas estão em sintonia com as necessidades do mundo real, ao contrário da equivocada agenda de mudança da matriz energética mundial a toque de caixa.

A revisão dos critérios de emissão de moeda e crédito, permitindo reorientar o sistema financeiro para a sua função precípua de fomento da economia real, é uma das tarefas mais urgentes para o período vindouro, ao contrário de falsas emergências como a imaginária crise climática.

Ou seja, em vez de uma “descarbonização”, o que a economia mundial necessita é de uma “desfinanceirização”, para permitir o enfrentamento dos problemas reais que afetam a maior parte da humanidade.

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