O custo da civilidade

No Brasil debate-se a democracia, a economia e o bem-estar da população como se tais elementos fossem fáceis de alcançar, bastando a sujeição ao estamento burocrático, ao complexo corporativo de mídia e às elites acadêmicas da USP, para que o país se torne uma avançadíssima civilização.

Aqueles que alegam possuir a receita científica da felicidade democrática e da prosperidade econômica são os mesmos que detêm o poder e dispõem de meios para alterar a ordem política nacional. Isto leva à reflexão sobre se falta submissão aos ideólogos ou se, ao contrário, lhes falta a capacidade de arquitetar um projeto de país realmente democrático e próspero.

Xavier Zubiri, na abertura do livro Naturaleza, Historia y Dios, tece uma crítica contundente à configuração moderna das ciências, diagnosticando uma crise estrutural dos saberes enquanto formas de relação com a realidade. Essa crise não se limita a uma incerteza metodológica ou a uma disputa de paradigmas e ideologias, mas consiste, em última instância, na perda do vínculo entre o saber e o real.

A ciência moderna, segundo Zubiri, ao instituir-se como modelo paradigmático de conhecimento — após a “revolução copernicana”, passou-se a crer que apenas a ciência pode conduzir a verdades confiáveis e estáveis —, fundamentou-se em uma concepção racionalista e formalista da inteligência, na qual o real é reduzido àquilo que pode ser quantificado, formalizado e manipulado.

O resultado desse processo é uma cisão entre o saber e sua origem: a experiência radical da realidade. Todo objeto concebido pela inteligência é também objeto da realidade, está dado e presente diante de um ser humano com sentimentos, dramas, problemas e um horizonte vital — uma perspectiva de mundo, ou “cosmovisão” — que transforma completamente a relação e a interpretação da inteligência diante dos dados do objeto. A ciência não é autônoma; é formulada por seres humanos que têm sua experiência existencial, história, valores e crenças. É impossível criar um sistema completamente racional, logicamente puro e abstrato em relação aos juízos, experiências e valores de quem os formula.

Zubiri observa que a ciência moderna opera com uma pretensão de neutralidade e objetividade que esvazia o próprio conteúdo do real. O objeto da ciência, concebido como mero dado exterior à inteligência, é abstraído de seu contexto existencial e reduzido a um conjunto de propriedades mensuráveis.

Essa objetivação, ainda que eficaz no plano técnico, implica a amputação do real enquanto presença e enquanto fundamento. O saber científico, privado de sua conexão com a experiência originária da realidade torna-se um saber sem objeto pleno — um saber que investiga, calcula e projeta, mas que não compreende, nem se compreende.

A crise das ciências, nesse sentido, é também uma crise do sentido do conhecer. As ciências modernas sabem “como” conhecer, mas já não sabem mais “por que” nem “para que” conhecem. A economia, por exemplo, rompendo com sua historicidade e fundamentos causais, foi matematizada e hoje gira em torno do lucro e da rentabilidade.

A economia não é uma ciência recente — Aristóteles já escrevia sobre economia doméstica e política — ela não nasceu como uma ciência voltada ao aumento do lucro por meio de demandas virtuais, mas como forma de compreender as possibilidades de produção e administração de bens, visando à manutenção da ordem social e da civilidade.

Quando alimentos, água e utensílios básicos tornam-se escassos, a civilidade e a ordem política são ameaçadas pela luta por esses elementos essenciais à sobrevivência humana. Portanto, a economia não nasceu como estudo das possibilidades de lucro por meio de demandas virtuais, assim como o direito não surgiu como ciência lógica das normas burocráticas.

Essa crise das ciências tem um impacto direto na formulação das políticas públicas atuais: a miopia do cientista que busca a “verdade” completamente neutra, também afeta a política ao alimentar a ilusão de um governo técnico, gestor e absolutamente neutro do ponto de vista político. Essa miopia impede uma reflexão essencial para a política no Brasil contemporâneo: o que é necessário para cultivar e manter a civilidade? Qual o papel das lideranças políticas no cultivo e na sustentação do bem-estar coletivo? Governos compostos apenas por bons gestores não trarão efeitos concretos à vida da população, pois a neutralidade política buscada pelo gestor tecnocrata não é solução — é parte do problema.

Os agentes da política nacional precisam refletir sobre o custo da civilidade, sobre os critérios e as condições necessárias para que a vida nacional possa florescer e articular-se em direção ao bem comum.

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