O duplo padrão descarado da imprensa

A imprensa brasileira não exibe apenas um padrão peculiar, mas uma descarada incoerência em seu apoio aos desmandos do Supremo Tribunal Federal (STF) – ela quase sempre endossa as intervenções da corte. Mas as justificativas mudam de forma cínica, expondo uma óbvia duplicidade moral. Por trás dessa dança de narrativas, cresce a percepção popular: há neste arranjo polpudas verbas publicitárias governamentais — ou ausência delas.

Um exemplo: no governo Bolsonaro, quando o STF barrou a nomeação de Alexandre Ramagem para a Polícia Federal, a grande mídia aplaudiu de pé. Naquele período, coincidindo com a drástica redução das verbas publicitárias federais para os grandes veículos, a narrativa era uma só: o STF estava “protegendo as instituições” e a legalidade contra um suposto “aparelhamento”. A prerrogativa do presidente de nomear seus próprios auxiliares, uma função básica do Executivo em qualquer democracia, foi simplesmente ignorada ou tratada sem relevância. A intervenção judicial era vista como um ato heroico, “essencial para a democracia”. Para a imprensa, sedenta por patrocínios estatais, ignorar a prerrogativa presidencial foi conveniente diante de um governo que não era um bom anunciante.

Agora, o cenário é diferente. O Congresso suspendeu o aumento do IOF. Em resposta, o governo, em mais uma tabelinha, recorreu ao STF para reverter a decisão do Congresso. E o STF atende, suspende o decreto, atropelando a decisão do Congresso. A imprensa? Continua apoiando o Supremo, mas com outra justificativa. A análise de Gerson Camarotti no G1 é um exemplo: ele contextualiza a decisão do STF como uma forma de “defender a prerrogativa do Executivo” de gerir a política econômica e a arrecadação. Logo, a decisão do STF, que de fato valida a intenção arrecadatória do governo, é vista como uma vitória governista.

Veja a ironia: a mesma prerrogativa presidencial que foi sumariamente descartada no caso Ramagem é agora ressuscitada e usada para legitimar outra intervenção do STF. Essa guinada ocorre em um contexto onde a relação do governo atual com a grande mídia se mostra mais próxima. Não é uma coincidência que a “defesa da prerrogativa” do Executivo suba ao palco justamente quando a torneira do dinheiro público para a mídia se abriu novamente. A prerrogativa, antes desprezada, agora é um artifício retórico para justificar o que lhes convém.

Esse comportamento não é nenhuma surpresa, afinal, no caso, o apoio ao STF é também uma defesa do seu melhor cliente. O problema é a desculpa que oferece para esse apoio. Se a decisão do STF é contra um governo que não “investe” em propaganda, a interferência é pintada como “defesa da democracia”. Se a decisão do STF beneficia um governo que gasta bilhões em propaganda, a interferência vira “defesa de prerrogativas” ou “correção técnica”.

Para ser um verdadeiro pilar da democracia, a imprensa deveria ter um mínimo de imparcialidade, um compromisso com a informação, aplicando os mesmos critérios a todos os poderes, independentemente de quem esteja no governo ou do volume de verbas publicitárias em jogo. Como isso parece um caminho sem volta, a sociedade tem cada vez mais certeza de que o jornalismo da grande mídia está a serviço do próprio bolso, a despeito da verdade, da coerência e do respeito à inteligência do cidadão.

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