Entre São Paulo e o Sul: dois Brasis do agro, uma mesma tensão

Os protestos no Rio Grande do Sul parecem girar em torno de dívidas, mas podem estar revelando algo mais profundo no agro brasileiro. A pauta imediata é legítima — produtores pressionam por medidas mínimas de sobrevivência após o desastre de 2023 — mas o contexto em torno desse movimento aponta para uma desconexão crescente entre quem produz e quem projeta o futuro do setor.

Enquanto no Sul agricultores enfrentam inadimplência, perda de lavouras e ausência de resposta estatal efetiva, em São Paulo — o estado mais rico do país — o governo celebra com entusiasmo o início da chamada “transição energética no campo”. A iniciativa é apresentada como avanço, mas embute um novo conjunto de exigências: rastreabilidade, metas ambientais, adoção de tecnologias digitais e adesão a critérios muitas vezes definidos fora do país.

O contraste é emblemático. Em um Brasil, a urgência é pagar contas vencidas e salvar a próxima safra. No outro, se projeta um modelo de agro cada vez mais regulado, padronizado e financeirizado — onde o acesso a crédito, mercados e até mesmo à terra, pode ser condicionado a certificações climáticas e protocolos ambientais.

A Europa já viveu um processo semelhante. Políticas de transição verde aplicadas de cima para baixo, com pouca margem de adaptação, acabaram empurrando pequenos e médios produtores para fora do sistema. A reação veio em forma de protestos, bloqueios e pressão institucional. Lá, como aqui, o discurso era sustentabilidade. Mas o efeito colateral foi a concentração da produção e a exclusão de quem não se encaixava no novo padrão.

No Brasil, a tensão é agravada por um pano de fundo que muitos já chamam de empobrecimento programado — um ambiente econômico em que até setores produtivos começam a ser sufocados por regras que não foram feitas para eles.

Essa convergência entre política ambiental, regulação financeira e crise no campo pode estar redesenhando silenciosamente a estrutura do agro nacional. Não por ruptura brusca, mas por reorganização indireta: quem não atende aos critérios de fora vai sendo deixado de lado, até desaparecer do jogo. O modelo muda sem precisar decretar a mudança.

Nesse cenário, os protestos no Rio Grande do Sul talvez não sejam apenas uma resposta à crise financeira do momento. Podem ser o primeiro sinal de que há algo mais profundo em disputa, o espaço real do produtor brasileiro dentro de um modelo que, aos poucos, vai sendo redesenhado — e não necessariamente por quem planta.

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