A morte simbólica do futebol brasileiro e o vácuo de identidade nacional

Durante décadas, o futebol brasileiro foi mais do que um esporte. Era linguagem comum, elo entre classes sociais, instrumento de autoestima coletiva e uma das formas mais eficientes de soft power que o Brasil possuía. A camisa verde e amarela, simples em aparência, carregava um prestígio que atravessava fronteiras. Pelé, Romário, Ronaldinho, Kaká, Neymar — nomes que projetavam a imagem de um país vibrante, criativo e respeitado. O Brasil, ali, ainda era reconhecido por algo que sabia fazer como ninguém: transformar jogo em arte. Isso não era apenas espetáculo. Era influência. Era poder simbólico.

Hoje, essa força está em ruínas. O futebol brasileiro foi capturado por uma lógica que o descolou completamente de seu papel simbólico. A CBF — que deveria preservar o futebol como patrimônio cultural e identidade nacional — foi transformada em um campo de disputa jurídica e política. Em vez de zelar pela tradição, foi ocupada por interesses corporativos e conveniências institucionais. Tornou-se um braço técnico de uma engrenagem sem rosto — incapaz de proteger aquilo que o futebol representa para o povo.

A consequência é visível: o futebol deixou de contar a história do Brasil. A camisa da seleção perdeu valor simbólico. Os jovens já não se reconhecem na seleção. Torcem para clubes europeus, admiram ligas estrangeiras, se identificam com ídolos que jamais pisaram em um campo brasileiro. Em campo, o futebol nacional virou uma vitrine de apostas. Patrocinado por plataformas obscuras, muitas delas ligadas ao chamado “jogo do tigrinho”, nosso esporte se converteu em outdoor de um modelo de vício, endividamento e manipulação — justamente o oposto do que deveria representar.

Enquanto isso, outros países compreendem o papel geopolítico do esporte. Veja os Estados Unidos. A final do Super Bowl não é apenas uma partida: é um ritual de afirmação nacional. Estádio lotado, hino cantado por todos, bandeiras em todos os cantos — e, sobrevoando o céu, caças e bombardeiros militares. É mais do que espetáculo. É o Estado dizendo: somos uma nação forte, temos orgulho de ser quem somos, e estamos prontos para mostrar isso. A operação custa caro — mas ninguém contesta. Porque ali, o povo se reconhece.

Durante a Guerra Fria, essa lógica estava em jogo na corrida por medalhas entre EUA e URSS. A Olimpíada era o campo simbólico onde se disputava a superioridade civilizacional. Hoje, a mesma competição se repete entre Estados Unidos e China — não por troféus, mas por hegemonia de valores, disciplina e projeto de nação.

E o Brasil? Saiu de cena. Desprezou seus próprios símbolos. Entregou o futebol a uma máquina de moer identidade e normalizou que ele seja usado como plataforma de manipulação, política ou financeira. A elite cultural, por sua vez, prefere importar modelos e desprezar tudo o que soa nacional. Gosta do futebol inglês, torce para clubes europeus e considera brega qualquer tentativa de resgate simbólico do que já fomos.

Não se trata de nostalgia. Nem de recusar investimentos ou profissionalização. Trata-se de reconhecer que, sem vínculos com a cultura nacional, até a gestão mais “eficiente” vira veículo de dissolução. Uma nação sem símbolos fortes, sem capacidade de se contar a si mesma, acaba se reduzindo a território. E um território, por mais rico que seja, pode ser facilmente dominado — cultural, moral e politicamente.

O colapso do futebol brasileiro não é apenas um fenômeno esportivo. É o retrato de um país que deixou de se reconhecer como nação.

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