Durante o G20 no Rio de Janeiro, uma organização criminosa determinou a suspensão temporária de roubos na cidade. À primeira vista, parece apenas mais um episódio grotesco da falência do Estado. Mas, analisando com mais profundidade, o episódio revela algo mais alarmante: a ascensão de um poder paralelo que já compreende as engrenagens da geopolítica, atua com racionalidade estratégica e ocupa, de fato, lacunas da autoridade estatal.
A decisão de suspender crimes em função de um evento internacional não foi motivada por princípios éticos ou pressões populares. Foi um cálculo. A facção sabia que uma escalada da violência durante o G20 poderia gerar repercussão global, trazer operações federais mais duras, acionar mecanismos de cooperação internacional e atrair uma vigilância estrangeira incômoda para seus negócios. Trata-se de uma leitura tática do cenário global. Um tipo de diplomacia do crime.
Esse comportamento revela um ponto-chave: organizações criminosas já operam com lógica semelhante à de um Estado. Tomam decisões com base em riscos reputacionais, sabem quando manter silêncio, quando avançar e quando recuar. E, como qualquer governo preocupado com sua imagem, tentam preservar a “normalidade” durante grandes vitrines internacionais.
O mais grave, no entanto, não é a existência dessa lógica paralela. É a constatação de que ela funciona. Em muitas áreas do país, não é o prefeito, o governador ou a polícia que dita o que pode ou não acontecer. É um conselho informal, armado e obedecido — com mais poder de coerção do que qualquer autoridade institucional. A facção não apenas comanda o crime; ela administra o território. E isso inclui definir o que é permitido, estabelecer punições, emitir comunicados e até “regular” a segurança local.
Quando um grupo criminoso consegue se comportar como governo informal e, ao mesmo tempo, entender as regras do jogo internacional, ele ultrapassa a fronteira do banditismo. Passa a ocupar o espaço de um ator político informal — sem legitimidade, mas com poder. Sua atuação não se limita ao tráfico ou à violência: ela influencia decisões públicas, molda o cotidiano de milhares de cidadãos e interfere, direta ou indiretamente, na condução do Estado.
A democracia representativa não se sustenta quando há zonas inteiras sob outra jurisdição. Mais que um problema de segurança, trata-se de um esvaziamento real da soberania. Se o poder estatal precisa aguardar a “autorização” do crime para garantir a paz durante um evento global, é sinal de que já há dois andares de governo: o visível, com cargos e discursos; e o invisível, com armas e autoridade real.
O episódio do G20, longe de ser um caso isolado, é apenas mais uma evidência de que a criminalidade organizada brasileira já deixou de ser um problema de fronteira ou de segurança pública. Ela se sofisticou. E, nesse processo, passou a agir como ator político e geopolítico — mesmo sem cadeira em nenhuma conferência internacional.