O escândalo dos descontos indevidos nos benefícios do INSS não é um desvio administrativo qualquer. Ele revela algo mais profundo e estrutural: a normalização de práticas que operam na zona cinzenta entre o erro e o conluio, entre a negligência e o lucro. O silêncio em torno dessa engrenagem não é fruto do acaso. Ele cumpre função — protege não apenas os executores do esquema, mas, sobretudo, os beneficiários dele.
Muito se falou sobre a necessidade de “ressarcir” os aposentados. Mas há uma pergunta que insiste em não ser feita: quem ganhou com isso? Quem lucrou com os débitos indevidos aplicados a pessoas que, em sua maioria, sequer sabiam que haviam “aderido” a algum serviço? E mais importante: por que nenhum ator relevante — nem financeiro, nem estatal — foi devidamente responsabilizado?
O discurso oficial tenta empacotar o episódio como uma falha isolada, um erro técnico, um desvio pontual. Mas não há nada de pontual quando uma operação dessa magnitude se repete por meses, atinge milhões de pessoas e movimenta bilhões. Estamos falando de um ambiente institucional permissivo, onde os riscos da fraude foram transferidos para os mais frágeis — e os lucros, concentrados no topo da cadeia.
O governo, que se apresenta como defensor dos pobres, foi ágil para anunciar medidas de compensação. Mas até agora se esquivou de qualquer iniciativa que signifique enfrentamento direto aos bancos envolvidos. Nenhuma auditoria independente. Nenhuma quebra de contrato. Nenhuma multa significativa. O risco moral segue intacto. O sistema, preservado.
Essa lógica tem um custo — e ele não é apenas contábil. Quando o Estado terceiriza a culpa e evita responsabilizar os reais articuladores, ele sinaliza que há dois tipos de cidadãos: os que pagam pelas falhas do sistema, e os que operam acima dele. E isso não gera apenas revolta. Gera descrença. Desgasta os fundamentos da confiança pública e da ideia de justiça.
No fim, a conta recai sobre quem vive com pouco. Sobre quem já é forçado a escolher entre comida e remédio. Sobre o aposentado que acorda um dia e descobre que parte do seu benefício foi consumido por um débito que jamais autorizou. E sobre a família que tenta entender como é possível que ninguém seja punido por isso.
Não há estrutura social que se sustente sob essa lógica de blindagem seletiva. A economia gira, sim, mas gira desequilibrada: socializa-se o dano, privatiza-se o ganho. Enquanto isso, os responsáveis seguem confortáveis, atrás de contratos, sigilos e tecnicalidades jurídicas.
Todo escândalo financeiro tem dois lados. O lado de quem perdeu — e o lado de quem nunca é chamado para explicar como lucrou tanto.