A cegueira revolucionária

O que chamamos de polarização  — o processo de divisão acentuada da sociedade em dois blocos opostos, geralmente associados a visões político-ideológicas antagônicas — está sendo levado em consideração pelos partidos políticos, mercado e mídia. Esta divisão tende a simplificar o espectro político, transformando-o em um campo de confronto moral ou existencial, no qual o adversário é tratado não como opositor legítimo, mas como ameaça à civilização e à existência do bem. A polarização está moldando hábitos de consumo, preferências eleitorais e a relação com as mídias e  a informação, e tudo já está sendo considerado nos posicionamentos públicos de políticos, órgãos de mídia, corporações e marcas de produtos. Mas o que causou a polarização? Como chegamos a esse estado de coisas, onde o país está inegavelmente dividido? 

Se olharmos para o mercado editorial brasileiro, os títulos das teses universitárias e a linguagem do debate público nacional, vamos notar que quase nada escapa à influência revolucionária do marxismo cultural. O marxismo “clássico” defendia a inevitabilidade de uma profecia, um apocalipse de um novo evangelho: a revolução proletária, inevitável como o desfecho de uma luta de classes misticamente visualizada por Marx no corredor da história, destruiria o capitalismo e instauraria um novo mundo. A história, porém, não se importou com o profeta, muito menos com a profecia. A Primeira Guerra Mundial foi o primeiro golpe, pois os cidadãos, ao invés de aproveitarem as crises nacionais para promoverem a revolução, defenderam seus países e deram suas vidas na guerra; o fracasso da revolução bolchevique em se espalhar para além da Rússia, o segundo golpe. 

A força profética do marxismo, ao invés de se esvaziar, ganhou forma de uma contracultura graças às revisões intelectuais dos “neomarxistas”. György Lukács, por exemplo, atribuiu a ausência de uma revolução à alienação dos trabalhadores, causada por uma cultura ocidental que os impedia de identificar seus interesses de classe. Ele considerava essa cultura, composta por elementos como tradições cristãs, direito romano e filosofia grega, uma estrutura ideológica que servia aos interesses da burguesia e, portanto, precisava ser desmantelada através da crítica para que os proletários pudessem retomar sua consciência de classe. 

Posteriormente, a Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais marxistas que incluía Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, formulou a teoria crítica, um método analítico voltado para examinar e desestruturar as bases culturais e ideológicas que sustentavam o capitalismo. Diferentemente do marxismo tradicional, que buscava soluções práticas para a revolução — como a organização de partidos políticos, grupos armados e greves —, a teoria crítica concentrava-se em uma análise contínua das normas sociais, religiosas e filosóficas ocidentais, sem propor alternativas imediatas. Esse novo paradigma intelectual fundou um movimento cultural que tentava diagnosticar e corrigir a sociedade ocidental, identificando o capitalismo como uma condição a ser superada por meio da desconstrução de seus fundamentos culturais. 

No Brasil, o neomarxista mais influente é Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, que apresentou uma abordagem complementar com sua teoria da hegemonia cultural e revolução passiva. Gramsci argumentava que o poder da classe dominante não dependia apenas da coerção e do aparato institucional, mas também do consentimento das massas, obtido pelo controle de instituições como a educação, a mídia e a cultura em geral. A ideia era a de que uma revolução socialista exigiria uma alteração prévia no “senso comum” da sociedade, substituindo os valores burgueses por uma consciência revolucionária. 

Assim, Gramsci desenvolveu o conceito de hegemonia cultural para explicar como uma classe dominante mantém seu poder não apenas por meio da força coercitiva e institucional, mas também através do consenso e da liderança intelectual e moral. Esse domínio de idéias é construído ao se infiltrar nas instituições da sociedade civil — como escolas, igrejas, meios de comunicação e organizações culturais —, moldando o senso comum e as normas sociais de maneira que os valores da classe dominante sejam percebidos como naturais e universais. Para alcançar essa hegemonia, Gramsci deixa claro a importância dos intelectuais orgânicos — indivíduos que emergem das classes subalternas e articulam suas experiências e aspirações em uma visão de mundo coerente e de simples assimilação. Esses intelectuais seriam uma espécie de porta-vozes do discurso socialista, Não estariam nas universidades, jornais ou elites políticas, mas nos sindicatos, igrejas e comunidades associativas em geral. 

A meta da revolução passiva de Gramsci é que o único discurso permitido seja o discurso do partido, que terá militantes infiltrados em todos os setores da sociedade. Ao chegar nesse ponto, a linguagem e os conceitos comuns serão socialistas, e dessa forma não haverá possibilidade de sequer articular outra visão de mundo que não o da perspectiva do partido. 

Os métodos de revolução de Gramsci foram aplicados pelo PT com disciplina franciscana, tomando a universidade, as redações de jornal e consequentemente dominando o debate público e a vida cultural do Brasil. A precariedade do nosso debate público, na política institucional e na produção cultural passa pelas consequências dessa estratégia bem-sucedida de supressão silenciosa e tomada do poder . O que causa a polarização e a divisão no nosso país é a cegueira revolucionária causada pela hegemonia cultural onde, de um lado, a direita sente-se ameaçada existencialmente e massacrada pelo PT. E do outro, a esquerda, portando-se como um predador feroz, busca aniquilar em definitivo a sua presa. A cegueira revolucionária nos impede de ver no outro um brasileiro com problemas, dilemas e dramas como todos  nós.

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