
Tornou-se pública uma fala do atual presidente da câmara dos deputados, Hugo Motta, a respeito da intromissão do poder judiciário: “Do ponto de vista da segurança jurídica, a interferência, muitas vezes de forma reiterada do Judiciário, atrapalha. O Judiciário está se metendo em praticamente tudo, e isso não é bom para o País. Acaba que não tem uma regra, e você não sabe como vai estabelecer o seu investimento”, disse Motta.
Talvez, só talvez, a judicialização de vários setores da vida social e institucional seja um problema atual no Brasil. Mas com toda certeza, a burocratização da vida social e a regulação do comportamento por via jurídica é um problema que vem crescendo com o passar das décadas.
Aqui, burocratização da vida social refere-se a ambição que as instituições neoliberais têm em substituir as questões éticas e morais por questões jurídicas e burocráticas, ou seja, regular o comportamento humano segundo um conjunto de sanções administrativas.
A burocratização da vida social expande o alcance do Estado para dentro da esfera privada. Assuntos que há décadas não eram de interesse público, hoje estão sujeitos a sanções administrativas.
Uma polêmica na cidade de Araucária, Paraná, ilustra perfeitamente o que é a burocratização da vida social de uma nação. Tayrine Novak, mãe de Thaylla, uma menina de 9 anos diagnosticada com doença celíaca em novembro de 2023, enfrentou desafios para garantir a dieta adequada de sua filha na Escola Municipal Professora Egipciana Swain Paraná Carrano. A doença celíaca exige uma dieta rigorosa sem glúten, e a escola oferece um cardápio específico para celíacos, conforme a legislação. No entanto, preocupada com a contaminação cruzada identificada em exames de Thaylla em abril de 2024, Tayrine começou a enviar lanches caseiros. Pois um bolo de cenoura enviado pela mãe para evitar a contaminação do lanche da filha virou polêmica. A mãe de um outro estudante enviou mensagem à escola reclamando da iguaria – seu filho ficou com vontade e o lanche causou inveja entre as crianças, pois diferia do menu escolar do dia, que era canjica. A direção orientou-a formalizar o relato na Ouvidoria da Semed.
Em 7 de abril de 2025, a controvérsia culminou em uma reunião onde Tayrine se viu diante de seis representantes da educação local, incluindo o diretor, vice-diretor, uma nutricionista e Eduardo Schamne, chefe de gabinete.
Durante a reunião, compartilhada nas redes sociais, Tayrine foi questionada sobre a dissimilaridade do lanche em relação ao menu escolar, com base na lei municipal 4513/2024, que permite o envio de alimentos de casa, mas exige que sejam similares ao menu para promover inclusão social. A prefeitura ofereceu alternativas, como Tayrine buscar ingredientes na escola para preparar os lanches em casa. Mas ela recusou, alegando limitações financeiras e a necessidade de priorizar a saúde de Thaylla.
A escola destacou que atende outros 10 alunos celíacos sem incidentes, sugerindo que o caso de Tayrine é uma exceção. Em 22 de abril de 2025, Tayrine registrou uma queixa policial contra uma professora, alegando bullying contra Thaylla, possivelmente em retaliação às postagens nas redes sociais.
Neste caso, de repercussão nacional, uma mãe foi intensamente sancionada por destoar das estruturas normativas que regulamentam a alimentação da filha na escola — o que demonstra claramente que o Estado tem mais poder que essa mãe no que se refere a alimentação de sua filha —, coisa inimaginável algumas décadas atrás.
O Estado está lentamente tornando-se o mediador de todas as relações humanas, mesmo as espontâneas e informais, avançando para questões essenciais como alimentação, tratamentos de saúde etc… . Uma prova de que a burocratização da vida social visa menos proteger as supostas vítimas de abusos do que suprimir as velhas formas de associação, e que as novas legislações de direitos dão sistemática preferência às reivindicações que separam os homens sobre aquelas que os unem.
Os agentes públicos fizeram uma série de sugestões para a mãe de Thaylla, mas em momento algum cogitaram que a mãe tinha o direito de escolher o que sua filha deveria ou não comer. A todo momento a mãe de Thaylla foi coagida a seguir a estrutura normativa burocrática, com flexibilizações e leves exceções, mas em momento algum pensaram na possibilidade da mãe simplesmente ter mais legitimidade para escolher o que sua filha deveria comer.
Além de um desequilíbrio entre os poderes da república — um problema atual e particular do Brasil —, precisamos abrir os olhos para um problema do espírito do tempo: a burocratização da vida social e a regulamentação da conduta humana.